domingo, 27 de maio de 2007

AUTONOMIA AGREDIDA

Dalmo de Abreu Dallari

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O novo Governador do Estado de São Paulo, José Serra, iniciando o exercício de seu mandato no começo de 2007, editou um conjunto de decretos que parecem ter sido preparados de afogadilho e sem avaliação de suas conseqüências, tendo já acarretado algumas conseqüências negativas, estando neles a raiz da invasão da Reitoria da Universidade de São Paulo por estudantes daquela universidade. Seja qual for a opinião quanto à conveniência e oportunidade da invasão, o fato é que os decretos do Governador estão diretamente ligados àquele acontecimento. Talvez se diga que se os estudantes estivessem mais bem informados quanto ao exato conteúdo dos decretos e ao seu alcance poderiam manifestar desacordo, mas sem chegar àquela medida drástica, mas isso também revela a afoiteza e imprudência do governo na apresentação do fato consumado, sem maiores esclarecimentos.

Na realidade, a análise jurídica dos referidos decretos leva à conclusão de que existem ali algumas evidentes inconstitucionalidades, havendo mesmo, em alguns pontos, uma tentativa de mascarar a realidade, por meio de uma espécie de ilusionismo jurídico, que, no entanto, não resiste a um exame mais atento, mesmo que baseado apenas no bom senso e na lógica. Bastaria observar que no dia 1º de janeiro de 2007 o novo Governador já emitiu extensos decretos, eliminando e criando Secretarias na organização administrativa superior do Estado, para tanto exercendo atribuições que não são do Executivo, mas da Assembléia Legislativa do Estado. É oportuno lembrar que o decreto é ato administrativo, que o Chefe do Executivo pode praticar para fixar regras de caráter regulamentar, mas que só têm validade e força jurídica se não contrariarem qualquer dispositivo da Constituição ou de alguma lei. E isso não foi observado.

Um desses decretos, o de número 51.460, de 1º de janeiro de 2007, pode ser considerado extremamente audacioso, pois expressa uma tentativa de alterar pontos substanciais da ordem pública pública, criando e extinguindo órgãos de grande relevância na organização administrativa fundamental do Estado, fingindo que só estão sendo mudados os nomes de alguns desses órgãos, sem nenhuma consideração pelos objetivos que inspiraram a criação desses órgãos e pelas características de suas organização, bem como pela especialização de seus quadros. A par desse absurdo, ocorrem ainda agressões a normas constitucionais expressas e já tradicionais no sistema constitucional brasileiro, como as que consagram a autonomia das Universidades públicas. A mais absurda dessas investidas contra a Constituição e o bom senso é a que consta do artigo 1º, inciso III, desse decreto, cuja redação é mais do que eloqüente na denúncia do absurdo:

“Artigo 1º. A denominação das Secretarias de Estado a seguir relacionadas fica alterada na seguinte conformidade:

..............................................................................................................................

III. de Secretaria de Turismo para Secretaria de Ensino Superior.”

Essa pretensa mudança de nome é uma aberração mais do que óbvia, pois o nome identifica toda uma estrutura, criada para atingir objetivos determinados e organizada para atingir essa finalidade. É do mais elementar bom senso que tendo sido criada para fomentar o turismo aquela Secretaria foi organizada de modo a poder atuar na área do turismo, com órgãos adaptados às características dessa área e, obviamente, com um funcionalismo especializado nesse setor de atividades. Se o Governador alegar que vai aproveitar a mesma organização e os mesmos funcionários estará afirmando um absurdo, pois ninguém será tão tolo a ponto de admitir que o mesmo dispositivo criado para atuar no turismo será competente e eficiente para desempenhar atividades de apoio e fomento à Educação Superior. E se disser que haverá completa alteração da estrutura organizacional e substituição do funcionalismo por outro capacitado para agir na área da Educação Superior, criando-se os cargos indispensáveis para tanto, estará confessando a fraude, a extinção de uma Secretaria e a criação de outra sob o simulacro de mudança de nome. Isso, além de tudo, configura uma inconstitucionalidade em face da Constituição do Estado de São Paulo.

Na realidade, a Constituição paulista dispõe, no artigo 24, parágrafo 2º, que “compete exclusivamente ao Governador do Estado a iniciativa das leis que disponham sobre:...2) criação e extinção de Secretarias de Estado e órgãos da administração pública, observado o disposto no artigo 47, XIX”. Segundo este último dispositivo, enxertado na Constituição do Estado pela Emenda Constitucional nº 21, de 2006, o Governador poderá dispor, mediante decreto, sobre organização e funcionamento da administração estadual, quando não implicar aumento de despesa, nem criação ou extinção de órgãos públicos. Ora, para que a Secretaria de Educação Superior possa agir com a mínima eficiência no âmbito da Educação é indispensável a existência de órgãos e servidores adequados e capacitados para esse objetivo, o que, evidentemente, não foi feito quando se criou a Secretaria de Turismo. A prova disso é que por meio de outro decreto, o de número 51461, também de 1º de Janeiro de 2007, o Governador do Estado definiu a organização da Secretaria de Educação Superior, ali incluindo muitos órgãos que, por motivos óbvios, não existiam nem existem na Secretaria de Turismo.

Em sentido oposto à necessidade de criação de órgãos e de cargos para especialistas em educação, é evidente que muitos órgãos, ligados ao turismo, ficarão inúteis, por absoluta inadequação, com a simulação da simples mudança de objetivos, impondo-se a extinção de tais órgãos, pela exigência óbvia de eliminação de despesas inúteis. Acrescente-se que com a simulação de simples mudança de nome da Secretaria, tentando ocultar a extinção de uma e a criação de outra, o Governador ofendeu a Constituição do Estado de São Paulo. De fato, pelo artigo 19, inciso VI, da Constituição, compete à Assembléia Legislação, com a sanção do Governador do Estado, dispor sobre a criação e extinção de Secretarias do Estado. Ou seja, esses atos exigem a aprovação de uma lei pela Assembléia Legislativa, não podendo ser praticados por decreto.

Outro ponto fundamental, relacionado com os decretos pelo atual Governador do Estado, é a ofensa à autonomia das Universidades Públicas, que tem apoio na Constituição da República e já constitui uma tradição no sistema público de educação superior no Brasil. Para que isso fique evidente, é oportuno lembrar o que dispõe a Constituição brasileira de 1988 sobre a autonomia das Universidades:

“Art. 207. As universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão.” Autonomia é expressão de origem grega, que indica o direito de agir independentemente, com suas próprias leis, tendo-se consagrado na linguagem política, jurídica e administrativa brasileira como sinônimo de auto-governo e auto-determinação. A autonomia das universidades foi uma conquista que atravessou várias etapas, incluindo a luta pela libertação de limitações à busca de conhecimentos e à afirmação de novas verdades científicas impostas por motivos religiosos. Em séculos mais recentes, a luta pela autonomia na busca e aquisição e transmissão de conhecimentos teve por meta a eliminação das limitações e dos condicionamentos impostos por motivos de conveniência política ou por intolerância e ignorância de governantes. Como parte da luta pela autonomia, colocou-se a exigência de apoio financeiro e de plena liberdade nas decisões sobre os objetivos e o modo de utilização dos recursos recebidos, para que prepondere sempre o interesse da humanidade, que deve ser o parâmetro superior da comunidade universitária.

Quanto ao sentido e à importância da autonomia, vem a propósito lembrar as observações feitas por dois notáveis juristas brasileiros que se detiveram no estudo do assunto e que com palavras claras e incisivas registraram suas conclusões. Um deles é Hely Lopes Meirelles, uma das mais importantes figuras do Direito Administrativo brasileiro, que, em estudo elaborado no ano de 1989, tendo em conta ameaças feitas à autonomia da Universidade Federal Fluminense, assim se expressou: “Na atual conjuntura, em face do artigo 207 da Constituição da República, “as universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão”. É a carta de alforria dessa instituições educacionais, que, ao longo do tempo, estiveram, muitas vezes, jungidas aos interesses eleitoreiros e imediatistas de quantos se arvoraram “tutores” da universidade.”

Outro notável mestre do Direito Público brasileiro, Caio Tácito, que foi professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, em estudo publicado na Revista de Direito Administrativo, também no ano de 1989, discorreu, com clareza didática, sobre o significado e o alcance da autonomia universitária. Eis as palavras do mestre:

“A universidade deve nascer, viver e conviver sob o signo da autonomia, que é um conceito multilateral. Primordialmente, autonomia científico-pedagógica, porque é da essência da instituição universitária criar, pesquisar, ordenar e transmitir o conhecimento, como elemento fundamental para difundir a educação e fomentar a cultura. Essa missão básica da universidade pressupõe, no entanto, a disponibilidade de meios flexíveis e satisfatórios à plenitude da concreção de seus fins. Daí a necessidade de estender-se o princípio da autonomia aos meios de operação, consistentes na autonomia patrimonial, autonomia orçamentária e financeira, autonomia administrativa e autonomia disciplinar.”.

A Constituição do Estado de São Paulo reproduz a garantia de autonomia das universidades, coerente com o disposto na Constituição da República, adicionando alguns pontos que é oportuno conhecer. Dispõe a Constituição paulista, no artigo 154, que “a autonomia da universidade será exercida respeitando, nos termos do seu estatuto, a necessária democratização do ensino e a responsabilidade pública da instituição, observados os seguintes princípios: I. utilização dos recursos de forma a ampliar o atendimento da demanda social, tanto mediante cursos regulares quanto atividades de extensão; II. representação e participação de todos os segmentos da comunidade interna nos órgãos decisórios e na escolha dos dirigentes, na forma de seus estatutos.”

Um ponto muito evidente, é que pelo próprio conceito de autonomia, como foi consagrado no sistema Constitucional brasileiro, assim como pelas disposições expressas das Constituições da República e do Estado de São Paulo, cabe à Universidade, exclusivamente e sem qualquer interferência externa, definir suas prioridades e suas diretrizes. Isso implica, também, a competência exclusiva da universidade para definir suas atividades de estudo e pesquisa, sem nenhuma interferência, a qualquer título, de órgãos da administração pública estadual. Por esse ponto fica evidenciada a inconstitucionalidade do decreto estadual nº 51.461, de 1º de janeiro de 2007, que pretendeu dar à Secretaria de Ensino Superior uma série de atribuições que são exclusivas da universidade, porque inseridas no âmbito de sua autonomia. Com efeito, o artigo 2º do decreto diz que constitui o campo funcional da Secretaria de Ensino Superior “a proposição de políticas e diretrizes para o ensino superior em todos os seus níveis”. Como já foi demonstrado, a própria criação da Secretaria de Ensino Superior configura uma inconstitucionalidade, que é agravada pela atribuição àquela Secretaria de funções exclusivas da universidade e que esta tem o direito de exercer com autonomia.

Muitos outros pontos, que significam agressões à autonomia universitária, poderão ser apontados nos infelizes decretos editados pelo Governador do Estado no ano de 2007. Uma referência final deve ser feita a agressões à autonomia financeira da Universidade. Como já foi amplamente demonstrado, a autonomia compreende, necessariamente, a autonomia financeira, que, por sua vez, compreende o direito de receber recursos financeiros do Estado e de lhes dar destinação, pelo modo e no momento que a Universidade, por seus órgãos internos próprios, julgar adequados. Constitui agressão à autonomia da Universidade a sonegação desses recursos que lhe são legalmente assegurados, sendo inadmissível que por conveniência política ou administrativa o governo do Estado retenha esses recursos, mediante o artifício que se convencionou chamar “contingenciamento”, tentando ocultar a realidade da sonegação. A Universidade tem direito constitucional à autonomia e deve posicionar-se firmemente contra todos os artifícios tendentes a diminuição ou negação dessa autonomia.

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