Inimigo secreto
MARINÊS CAMPOS - Jornal da Tarde
Já faz uma semana que o soldado R., antes de sair para o trabalho, sobe na laje da casa inacabada da Zona Leste e vasculha com os olhos a rua onde mora. Depois, deixa a mulher e os filhos no apartamento dos sogros e, assustado, segue sozinho para o quartel. O temor do PM não é apenas o de ser o próximo alvo do PCC. Pouco tempo atrás, ele descobriu que, entre os bandidos, o endereço do sobrado onde vive com a família está valendo 20 pedras de crack mais R$ 3 mil.
O pânico do soldado foi ainda maior: a "venda" do nome da rua e do número do sobrado estava sendo negociado entre o chefe de um ponto de tráfico e um companheiro do próprio quartel. Mas o colega não conseguiu fechar o negócio com o bandido - alertado do risco por um informante, R. deixou a casa que construiu aos poucos, mudou de bairro e agora paga aluguel.
Hoje, além do medo de serem surpreendidos pelo tiro de um criminoso desconhecido, policiais civis e militares têm convivido com a desconfiança e a suspeita dentro das delegacias e quartéis - além de se proteger do PCC, convivem com a insegurança de trabalhar ao lado de colegas ligados ao crime. Há muito tempo sabem que a organização criminosa tem infiltrado seus homens nas duas corporações - eles chegam a prestar concurso público - e que, dessa posição privilegiada, conseguem informações valiosas para os chefes. Já os policiais corruptos preferem vender endereços, munição ou armas. Por isso, nesses dias de guerra na Cidade, os caçadores têm virado caça.
"Vivemos num campo minado. Estão matando policiais de folga, à paisana. E quem pode indicar o lugar onde a gente mora ou está fazendo bico? Bandido não vai ficar ficar seguindo o policial para ter essas informações. A questão é que tem muitos inimigos entre nós", diz um oficial da PM.
"Nunca fico de costas para algumas pessoas que trabalham comigo. Foi instalada a máfia na polícia", revela um dos delegados mais antigos da Polícia Civil.
As queixas não são feitas sem motivo. Há pouco tempo, policiais da Zona Norte receberam a denúncia de que um PM estava ensinando bandidos da região a lidar com armas mais modernas - os criminosos estavam tendo dificuldade em atirar com metralhadoras e fuzis. "A Corregedoria não conseguiu apurar a denúncia, mas o comando transferiu o cara lá para a periferia da Zona Sul", contam alguns soldados.
O cabo J., há 15 anos na PM, também não confia nos próprios colegas de farda: "A corrupção na polícia aumentou muito e o deus dos caras é o dinheiro. Dão R$ 1 mil pela sua cabeça e você roda." O valor oferecido pelo endereço do policial visado, segundo o cabo, depende do "prejuízo" que causa na sua área de trabalho: "Se é um policial que quebra as bocas de tráfico, a informação pode valer R$ 5 mil."
Desde que recebeu o aviso do informante, o soldado R. triplicou os cuidados: "Dá para contar nos dedos o número de pessoas que sabem onde moro. Não chamo ninguém fora da família para as festas de aniversário dos meus filhos."
A cada dia ele faz um caminho diferente de volta para casa, nunca diz nomes no telefone. Não aceita carona dos colegas e, se não dá para escapar da oferta, pede que pare o carro na rua errada. "É por isso que estou vivo. Já mataram muitos PMs e, além da casa, os bandidos sabem até onde a gente faz bico."
No trabalho nas ruas, não sabe de qual arma partirá um tiro: "A gente entra no local da ocorrência e tem a suspeita de que seu colega está envolvido no crime. E não sabe se ele vai atirar nas suas costas. O bandido está tão acostumado a lidar com policial corrupto que, quando a gente prende ele, vai logo falando: 'Dá para trocar uma idéia e fazer um bem bolado?'"
Tanta desconfiança tem um motivo. Algum tempo atrás, o soldado viu um amigo viver a mesma situação de pânico. Tanto que pediu transferência para outro quartel: "Uma pessoa em quem ele confiava deu a letra (os horários das escalas de trabalho e o endereço da casa). Por isso, me espelho nas pauladas que os outros tomaram."
Algumas denúncias contra os maus policiais chegam a ser apuradas. Outras, contam os PMs, são escondidas por quem tem interesse em manter a sujeira debaixo do tapete: "Tem oficial que sabe que o subordinado é bandido, mas não faz nada para que os superiores não saibam que ele não teve competência para comandar a tropa."
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