Claro Enigma
Entrevista do Professor Sérgio Adorno
à Folha de São PAulo - 21/05/2006
Sérgio Adorno, do Núcleo de Estudos da Violência da USP, diz que a universidade tem poucos dados para interpretar o fenômeno do crime organizado em São Paulo e também foi surpreendida pelos ataques.
Há anos dedicado ao estudo da violência, o professor Sérgio Adorno lembra bem de uma época em que podia entrar nas prisões para fazer pesquisa. "Há dez ou quinze anos, era inimaginável que um professor de uma universidade pudesse ser seqüestrado ou atacado.” Hoje, sabe que, se voltar a freqüentar o sistema carcerário, pode virar uma moeda de troca valiosa na mão de uma facção criminosa como o PCC (Primeiro Comando da Capital).
Apesar de saber da capacidade de mobilização que o grupo tem no Estado, o coordenador do Núcleo de Estudos da violência e professor titular da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, ambos da Universidade de São Paulo, disse que se surpreendeu com a onda de violência provocada pela facção na semana passada. “A capacidade de se organizar para fora das grades, de coordenar um processo de queima de ônibus e ataque a prédios e bancos e de desorganizar a vida na cidade para mim foi urna grande surpresa.” Na semana passada, Morno atrasou seus compromissos acadêmicos para atender à enxurrada de telefonemas de pes soas que o procuraram para que tentasse explicar o que aconteceu.
Abaixo, trechos da entrevista que concedeu à folha.
FOLHA- O sr. acha que os estereótipos que apontam o Rio como uma cidade mais violenta do que São Paulo vão mudar depois dos acontecimentos da semana passada?
ADORNO - A idéia de que o Rio é mais violento que São Paulo é urna construção social cujas explicações são as mais variadas, O Rio tem a imagem de ser a porta de entrada do país, a cidade maravilhosa e, por conta disso, é uma cidade mais vulnerável. Mas a visão de que São Paulo menos violenta nunca foi sustentada por nós, pesquisadores.
FOLHA - Como o sr. explica o modo como a sociedade, a classe média particularmente, se amedrontou diante da onda de violência?
ADORNO - A sociedade se surpreendeu com os acontecimentos porque eles foram, de fato, ímpares. Eu, como pesquisador, sabia que o crime organizado estava nas prisões. Dou um exemplo. Fiz muita pesquisa em prisões há, mais ou menos, dez ou 15 anos e costumava entrar no sistema penitenciário com muita tranqüilidade. Na época, era inimaginável que um professor universitário pudesse ser seqüestrado ou atacado. Hoje é diferente. Uma pessoa como eu virou unia moeda de troca valiosa.
FOLHA - Como se deu a mudança da dinâmica interna das prisões?
ADORNO - Um dos fatores importantes para explicá-la é a mudança de perfil tanto das pessoas que estão encarceradas como dos agentes encarrega dos da disciplina e da ordem nas instituições. Para mim não era surpreendente a existência do crime organizado Mas o que aconteceu foi, sim, surpreendente. Eu sempre imaginei que eles pudesse mobilizar o sistema penal e provocar levantes simultâneos.
Mas a capacidade de se organizar para fora: das grades e de coordenar um processo de queima de ônibus, ataque a prédios e bancos e de desorganizar a vida na cidade para mim foi
uma grande surpresa. Significa que chegamos a um outro patamar na evolução da criminalidade e da violência E, quando o cidadão se surpreen de, isso acontece porque, para ele, essa coisa do crime organizado estava distante. Era algo que ficava lá nos bairros populares e que não tinha nada haver com quem mora num bairro de classe média. Os eventos da semana passada deixaram claro que isso está próximo e que tem uma enorme capacidade de desorganizar a vida cotidiana de quem quer que seja.
FOLHA - O sr. acha que pode ter havido um estopim simples para tudo isso, mas que a coisa acabou superando até o que os criminosos achavam que podia acontecer?
ADORNO - E possível. O problema é que a gente não sabe. Te mos pouca informação segura, de análises ou pesquisas, sobre o crime organizado em São Paulo. Por várias razões. A principal é que é muito difícil fazer pesquisas nessa área Para isso, é preciso entrar dentro do sistema, e isso é difícil.
A gente infere essas coisas a partir do que é veiculado pela imprensa e fazendo pesquisa com jovens da periferia. Dá pa ra verificar que aquele perfil de criminalidade espontânea, em torno de quadrilhas ou de gangues, por exemplo, é coisa do passado.
A gente não sabe se esse co mando é centralizado. Aparentemente deve ser. Mas não podemos ter certeza de como as ordens são transmitidas. Possivelmente se usa celular, mas não sabemos se é só isso. Em pouco sabemos como essas ordens são encadeadas, como chegam à outra ponta e como são obedecidas.
Recentemente, nós retoma mos a leitura da CPI do Narcotráfico, que tem um capítulo só sobre São Paulo. E basta ler aquilo para ver que o crime organizado é uma realidade mui to forte no Estado de São Paulo.
E por que as autoridades não tiraram lições dessa CPI? Por que não transformaram isso em políticas? E algo que temos de investigar. Precisamos cobrar a razão pela qual nada disso resultou em ações concretas.
FOLHA - Quão politizado o sr. diria que é esse crime organizado?
ADORNO. Quando eu fazia pesquisa no passado, verificava que o grau de escolaridade da massa carcerária era baixo. E que correspondia à baixa escolaridade do cidadão brasileiro.
O que verificamos nos últimos dez anos? Aumentou a escolaridade do cidadão brasileiro e dos que estão no crime também. Hoje eles são mais escolarizados, mais preparados e estão mais conectados com o que se passa na sociedade além de seu próprio bairro. Eles lêem jornais e assistem TV. Por isso, são mais politizados, têm capacidade de entender sua força.
FOLHA - como o sr. acha que a população menos favorecida via o PCC e como o vê hoje?
ADORNO - Tenho dúvidas de que o PCC tivesse apoio dos mais pobres. Acho que o crime organizado, para essa! população, é também algo. opressivo. As pessoas na periferia não podem circular livremente e, se existe a suspeita de que possam ter tido contato com alguém que possa fazer algum tipo de delação, são executadas.
As pessoas mais pobres têm medo de falar, é por isso que não se consegue pesquisar o crime organizado. Porque as pessoas não falam. Elas sabem que falar é decretar a sentença de morte.
FOLHA - O sr. acha que os filmes recentes que tratam da violência nas grandes cidades e os fenômenos do rap e do hip hop de alguma forma contribuem para uma glamourização da violência?
ADORNO - Eu tenho dúvidas sobre se essas mensagens têm mesmo um poder de fogo sobre as pessoas. Sempre acho que elas elaboram as mensagens, as informações e têm uma capacidade de autocrítica Essa idéia de imaginar que os mais pobres são absolutamente incapazes de pensar, por exemplo, é um equívoco. Eles podem não pensar exatamente com instrumentos sofisticados de argumentação, mas são capazes de fazer críticas contundentes.
FOLHA- Mas a classe média?
ADORNO - A classe média trata isso como mercadoria a ser consumida. Nós sabemos que o tráfico funciona porque há um mercado consumidor, as classes média e média alta. As pessoas não entendem que, no mo mento em que estão consumindo a sua droga ou fumando seu cigano de maconha, na outra ponta tem alguém morrendo.
E como se não houvesse nenhuma solidariedade com as vítimas. Acho que a classe média tem uma visão de distancia mento e de não-identidade cornos problemas da sociedade na qual está vivendo. Ela só fica assustada quando enfrenta es sa situação e percebe que a realidade é muito mais grave do que imagina.
Não há solidariedade com aquelas pessoas que, na periferia, vivem numa situação de opressão ou do crime organiza do ou da polícia. Acha-se que lá é o lugar do crime mesmo e que a policia tem que ir lá e colocar ordem para garantir que ela possa circular. Evidentemente que o direito à segurança é um direito de todos. Mas você não pode ter mais segurança para uns em detrimento da segurança de outros.
FOLHA - O sr. acha que faltaram mobilizações contra a violência de pois do episódio?
ADORNO - Sim, há urna certa acomodação: Hoje há muitos grupos mobilizados e surgiram muitas associações. Não acho que esta seja uma sociedade absolutamente passiva. E só olhar para o que era esse tema dez anos atrás e o que é hoje. Mas eu esperava, nesse momento, unia reação mais forte. E que as pessoas dissessem: «Basta com essa política porque nós já conhecemos o resultado dela”.
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