Entrevista com o Professor Fábio Konder Comparato
O poder é o território do demônio
São Paulo, 07/12/2008 - Dar à população o poder absoluto de decidir sobre as principais demandas do País e, principalmente, a chance de tirar do alto de seus postos os políticos que não estejam cumprindo da forma adequada os seus papéis. Tudo isso por intermédio de plebiscitos, simples, diretos e sem qualquer burocracia ou acordos de colarinho branco. O povo no poder de fato. Este seria o modelo ideal de democracia para o jurista Fábio Konder Comparato - medalha Ruy Barbosa do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e presidente da Comissão Nacional de Defesa da República e da Democracia da entidade -, que esteve na última quinta-feira em Campinas para participar de um evento no plenário da Câmara Municipal. "O poder é o território do demônio. Ele inebria, enlouquece", afirma o jurista. "É preciso pressionar câmaras e prefeituras todos os meses. Política se faz coletivamente. Sozinho não se faz nada", ressalta.
Para Comparato, um regime que toma decisões essenciais para o destino do País sem ouvir a sua população não pode ser chamado de democracia. E na metralhadora giratória de idéias e filosofias do jurista sobra até mesmo para os militares. Ele aponta que falar em "ditadura militar" é um erro, já que, de acordo com ele, as Forças Armadas, na verdade, serviram muito mais como massa de manobra para um empresariado sedento por lucro. Quando o chamado "milagre" econômico brasileiro se mostrou um pesadelo de grandes proporções, quem realmente dava as cartas tratou de forçar o fim do regime, um dos piores capítulos da história nacional.
"Precisamos formar cidadãos e reformar as instituições. O bem comum tem que estar sempre acima dos interesses privados", reforça Comparato, também crítico ferrenho das privatizações que ocorreram no Brasil nos últimos anos.
Na cidade, o jurista participou da aula inaugural da Escola de Governo de Campinas (EGC), entidade civil criada com o objetivo de disseminar a ética na política e atuar na formação de líderes públicos. A iniciativa é do Movimento pelos Deveres/Direitos do Cidadão (MDC). Em sua participação, Comparato tratou do tema O Dever da População Popular faz o Governo do Povo. Ele é conhecido pela sua luta pelos direitos humanos e pelo combate à corrupção. O jurista ainda é o idealizador da Escola de Governo de São Paulo, na qual o MDC se inspirou para criar a EGC.
Leia, a seguir, a entrevista concedida por Fábio Konder Comparato ao jornal Correio Popular (SP):
P - Em sua palestra, o senhor defendeu a possibilidade da população tirar do poder os políticos que não estejam exercendo as suas funções da forma correta. Será que isso seria possível no Brasil um dia?
R - Eu acho que, eticamente, não é apenas uma possibilidade, mas um desejo. Isso já existe em 15 unidades norte-americanas, por exemplo. A OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) já apresentou no Senado Federal uma proposta de emenda constitucional sobre isso; a emenda 75 ou 73, de 2005. A idéia é revogar não só o mandato dos chefes do Executivo, mas também dos parlamentares. Esse tipo de coisa não é novidade nenhuma porque, no sistema de governo parlamentarista, isso existe há muitos séculos. A dissolução da Câmara pode ser feita por iniciativa do chefe de Estado. A nossa proposta, por sua vez, é muito mais democrática. A dissolução seria por decisão do povo.
P - O País vive uma democracia de fato ou estamos em um regime ilusório?
R - Eu acho que está havendo um progresso na consistência democrática da população em geral, mas democracia efetiva nós ainda não temos. Há certas carências que são decisivas. Por exemplo: em todas as legislações das unidades da federação, seja a Lei Orgânica do Município, a Constituição do Estado ou a Constituição Federal, quando são emendadas ou reformadas, essas mudanças não são submetidas à provação popular. Os nossos representantes não dão ao povo esse poder de decisão. Um referendo popular para definir as questões de interesse público seria uma medida salutar de pedagogia política. A lei de zoneamento de uma cidade, por exemplo, deveria ser submetida à provação popular porque a lei de zoneamento é feita sob pressão das empresas do setor imobiliário. Como sempre, no Brasil, o povo é um eterno ausente.
P - Mas essa ausência é culpa dos governantes ou da própria população, que não se mobiliza?
R - Isso é culpa das organizações oligárquicas, que são minorias que trabalham em conjunto no Brasil e que procuram aparecer teatralmente como se fossem representantes do povo. A população não tem consciência de que é uma mera expectadora.
P - O que fazer para mudar essa postura?
R - Para mim, a educação cidadã deveria ser obrigatória. Todos os brasileiros deveriam ser educados para atuar politicamente. Na democracia grega, por exemplo, o cidadão que se recusasse a comparecer às assembléias para votar poderia ser expulso da cidade, ou seja, ele se colocava isolado da comunidade. Hoje, é importante dizer que a educação também tem que passar pelos meios de comunicação de massa. Em algumas comunidades brasileiras, as crianças de classes mais pobres ficam até oito horas olhando para a televisão. Discutir sobre o que elas aprendem ou desaprendem é importantíssimo. O que se deve levar em conta é o fato de que a educação não pode ser encarada apenas como uma espécie de instrução profissional. Ela é, sobretudo, a preparação da pessoa para enfrentar os riscos, os desafios da vida. Serve para entender a nobreza do ser humano e a importância de uma vida de acordo com a justiça, a verdade e o amor.
P - O senhor acha que vivemos hoje uma crise ética no País ou essa crise já vem de muito tempo e só agora chegamos a essa conclusão?
R - O que vivemos atualmente é a solução do problema. No meu modo de ver, a crise realmente existia quando nós não tínhamos a consciência de que isso daqui (o Brasil) nunca havia sido uma democracia, de que nós praticamos um genocídio das tribos indígenas durante três séculos, mantivemos a escravidão oficial durante quase quatro séculos, praticamos horrores no que diz respeito à opressão... Nossa consciência está se abrindo. Isso é um progresso ético.
P - Qual a sua opinião sobre a crise econômica mundial? Esse é o preço pago por um pensamento neoliberal, de uma política que prioriza o ganho econômico em detrimento do ganho social?
R - Isso é uma conseqüência inevitável da substituição da produção pela especulação. Quando um galho quebra, os outros vão quebrando também e a árvore inteira cai. De maneira muito rudimentar, podemos comparar isso com a crise do gado zebu que, com a especulação nos anos 40, de repente, as cabeças não valiam mais nada. É inadmissível que o futuro da humanidade fique nas mãos de grande especuladores. Isso mostra... eu espero que mostre... a urgência de estabelecermos um governo mundial realmente democrático, com um controle de poder e a participação dos povos.
P - O senhor também fez críticas em relação à forma como o governo federal está lidando com a questão da camada de pré-sal (uma imensa reserva de petróleo encontrada no fundo do mar entre o Espírito Santo e Santa Catarina). Como, na sua opinião, o assunto deveria ser tratado?
R - Bom, em relação não só ao pré-sal e ao petróleo, mas também a todas as outras jazidas, como os gazes naturais ou minérios de modo geral, quando se fala em monopólio da União é preciso saber duas coisas: em primeiro lugar, o poder monopolista não é proprietário, mas tem a exclusividade de exploração dessas riquezas. A real proprietária dessas riquezas é a Nação brasileira como um todo. Quem explora essas jazidas, como uma empresa privada estrangeira, por exemplo, fica com o petróleo que conseguiu extrair para si. A União não pode alienar as riquezas do País sem a devida autorização do povo. Então, ao meu ver, a verdadeira solução é voltar ao sistema de exploração diretamente feito pela União, com a participação de uma empresa estatal, como a Petrobras. Ela é a única que tem capacidade tecnológica para explorar essas riquezas. Talvez, no campo do pré-sal, a Petrobras seja a única no mundo que tem a capacidade para explorar isso convenientemente. O que o governo alega é que não há capital suficiente para fazer essa exploração, mas isso é uma alegação, ao meu ver, para usar uma expressão mais elegante, não correta. Todo ano, os gastos em relação à dívida pública, por exemplo, são de bilhões de reais. Valores superiores aos gastos com Educação e Seguridade Social, por exemplo.
P - Também em sua palestra na Câmara, o senhor comentou que o termo "ditadura" seria errôneo para identificar o período do regime militar no Brasil. O que teria acontecido na realidade, segundo o senhor, seria uma ação da oligarquia militar aliada a do empresariado. O regime de opressão só existiu enquanto foi oportuno para alguns grandes grupos econômicos?
R - Quando nós acabamos aqui no Brasil com a fase do milagre econômico, não só os empresários brasileirosmas também todas as potências econômicas mundiais achavam que já era hora dos militares saírem do poder. O que os militares fizeram foi apenas encontrar uma saída honrosa. Já o empresariado, ou seja, os proprietários de bens de produção, a começar pelos latifundiários, desde o inicio da colonização sempre fizeram parte de uma oligarquia forte. Atualmente, eles apenas mudaram um pouco sua posição hierárquica. Há 50 anos, quando o presidente da Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo) dava um espirro, o governo federal ficava com pneumonia. Hoje, obviamente, o governo federal ainda está submetido ao poder das forças financeiras.
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