domingo, 21 de dezembro de 2008

Hannah Arendt, a ruptura totalitária e a reconstrução dos Direitos Humanos
Celso Lafer - Prof. da Faculdade de Direito da USP

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Hannah Arendt, é um ouriço na percepção da ruptura trazida pela experiência do totalitarismo - que levou às últimas consequências a modernidade que, na vertente capitalista, comportou o nazismo e na vertente socialista o stalinismo.

Em síntese, para Hannah Arendt o "tudo é possível" da experiência totalitária mostrou como uma forma até então inédita de organização da sociedade assumiu, explicitamente, em contraposição aos valores consagrados da Justiça e do Direito e avocados pela modernidade - inauguradora, com o individualismo, da perspectiva ex parte populi - que os seres humanos são sepérfluos e descartáveis.

Daí o esfacelamento dos padrões e categorias que integram o conjunto da tradição ocidental, que tinha feito da pessoa humana um "valor-fonte" da experiência ético-jurídica e, por via de conseqüência, o hiato entre o passado e o futuro. Este hiato gera contínuas perplexidades no presente na medida em que o repertório da tradição, inclusive o do pensamento jurídico, não fornece critérios para a ação futura e conceitos para o entendimento dos acontecimentos passados.

Hannah faz uma proposta de reconstrução. Esta proposta se baseia numa retomada crítica do pensamento ocidental, almeja o exame das condições políticas e jurídicas que permitam assegurar um mundo comum, assinalado pela pluralidade e pela diversidade e vivificado pela criatividade do novo, que através do exercício da liberdade, que está ao alcance dos seres humanos, impeça a reconstituição de um novo "Estado totalitário de natureza".

Logo, Hannah Arendt afirma a importância, para a dignidade humana, do pluralismo centrífugo de um mundo assinalado pela diversidade e pela liberdade.

São reais os riscos de reconstituição de um "Estado totalitário de natureza", pois continuam a persistir no mundo contemporâneo situações sociais, políticas e econômicas que contribuem para tornar os homens supérfluos e sem lugar num mundo comum.

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A ubiquidade da pobreza e da miséria, assim como a da ameaça do holocausto nuclear; a coincidência entre a explosão demográfica e a descoberta das técnicas de automação que podem tornar segmentos da população descartáveis do ponto de vista da produção são, inter alia, situações que evidenciam a relevância e a atualidade das preocupações de Hannah Arendt.

Proposta básica, alinhada com o pensamento de Hannah Arendt, é a conversão, com os direitos subjetivos e os direitos humanos, do homem como o sujeito de Direito, legitimador do ordenamento jurídico.

O Direito Natural se contrapõe ao Direito Positivo, localizado no tempo e no espaço, e funciona, neste paradigma, como um ponto de Arquimedes para a análise metajurídica: tem como pressuposto a idéia de imutabilidade de certos princípios, que escapam à História, e a universalidade destes princípios, que transcendem a Geografia.

A estes princípios, que são dados e não postos por convenção, os homens têm acesso através da razão comum a todos, e são estes princípios que permitem qualificar as condutas humanas como boas ou más - uma qualificação que promove uma contínua vinculação entre norma e valor e, portanto, entre Direito e Moral.

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O novo paradima da Filosofia do Direito é uma resposta ao processo da crescente positivação do Direito pelo Estado - um processo que realçou o papel do Direito como instrumento de gestão e comando da sociedade através da técnica das ordens e proibições, dos estímulos e desestímulos às condutas humanas.

Por isso, o Direito deixou de ser encarado como algo dado pela razão comum e que permite qualificar condutas como boas ou más. Passou a ser visto como algo posto e positivado, direta ou indiretamente, pelo poder que estabelece, para distintas sociedades, de maneira não-uniforme, a diferença entre o lícito e o ilícito, e que assegura a governabilidade por meio da efetividade desta diferença garantida através do mecanismo da sanção.

Daí a mutabilidade do Direito no tempo e o seu particularismo no espaço, situação que, ao ser generalizada, diluiu a relevância do paradigma do Direito Natural.

É por essa razão que o novo paradigma da Filosofia do Direito surge na pssagem das gerações e dentro do âmbito da tradição como o resultado de uma dupla confrontação, examinada com muita pertinência por Elías Díaz: frente ao Direito Natural como uma análise sobre as realidades do Direito Positivo, e frente ao Direito Positivo como uma reflexão que, criticamente, vai além dos dados empíricos através dos quais se exprime o Direito Positivo.

O paradigma da Filosofia do Direito não é, para usar a sugestiva distinção dicotômica de Ortge, uma crença na qual se está, mas uma idéia a que se chegou pelo esforço pessoal e individualizado dos jusfilósofos. Neste sentido, contrasta com o paradigma do Direito Natural, que foi muito mais uma crença generalizada, que se imbricou com a própria realidade durante a sua multissecular vigência histórica.

Aliás um indício de como o Direito Natural deixou de ser crença e , portanto, padrão envolvente, e passou a ser idéia, é a de que pode ser encarado, como propôs Miguel Reale, como uma conjectura plausível.

O paradigma da Filosofia do Direito, porque é idéia que resultou da fratura da crença no Direito Natural, é mais plurívoco do que unívoco na sua busca de um saber confiável em matéria de Direito. O que o caracteriz, a meu ver, é o seu modo de explicitação enquanto idéia e não crença.

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A ruptura surge, provocando o hiato de que fala Hannah Arendt, e levando ao desconcerto epistemológico, quando a lógica do razoável que permeia o paradigma da Filosofia do Direito não consegue dar conta da não-razoabilidade que caracteriza uma experiência como a totalitária. Esta, convém frisar, não foi fruto de uma ameaça externa mas, ao contrário, foi gerada no bojo da própria modernidade e como desdobramento inesperado e não-razoável de seus valores.

Diante da experiência do totaliatrismo no poder, não tem pertinência a lógica do razoável do pradigma da Filosofia do Direito.

O amorfismo jurídico que caracteriza o Estado totalitário torna sem utilidade prática a definição do Direito pela forma; o antiutilitarismo do movimento, que assinala o totalitarismo no poder, torna sem sentido a categoria do interesse, na qual se apóia grande parte das análises e das propostas sobre o encaminhamento do descompasso entre a norma e a conduta das pessoas; e finalmente o campo de concentração - que é o modelo da sociedade totalitária, pois realiza a meta de dominação total - torna descabida a discusssão crítica dos vários critérios de Justiça.

De fato - e nisto está o ineditismo da ruptura - o totalitarismo é uma proposta de organização da sociedade que escapa ao bom senso de qualquer critério razoável de Justiça, pois se baseia no pressuposto de que os seres humanos são, e devem ser encarados, como supérfluos.

A convicção, explicitamente assumida pelo totalitarismo, de que os seres humanos são supérfluos e descartáveis, representa uma contestação frontal à idéia do valor da pessoa humana enquanto "valor-fonte" de todos os valores políticos, sociais e econômicos e, destarte, o fundamento último da legitimidade da ordem jurídica, tal como formulada pela tradição, seja no âmbito do paradigma do Direito Natural, seja no da Filosofia do Direito.

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A idéia de direitos inatos foi sendo elaborada pelo jusnaturalismo moderno e tidos como uma verdade evidente, que seriam a medida da comunidade política, mas que dela independeriam.

A positivação das Declarações de Direitos Humanos, nas constituições, tinha como objetivo conferir segurança aos direitos nelas contemplados, para tornar aceitável pela sociedade a variabilidade do Direito Positivo, requerida pelas necessidades da gestão do mundo moderno.

O processo de positivação não desempenhou esta função a que aspirava o paradigma do Direito Natural, na vertente moderna, pois o elenco dos direitos do homem contemplados pelo Direito Positivo foi se alterando do século XVIII até os nossos dias.

Este processo de mudança obedeceu à lógica do razoável que caracteriza o paradigma da Filosofia do Direito e tinha como objetivo, na interação entre governantes e governados, ensejar a governabilidade, respondendo à percepção de novas realidades históricas.

Explico, dessa maneira, como se encaminhou dos direitos humanos de primeira geração - os direitos-garantia, de cunho individualista - para os direitos de segunda geração - os direitos de crédito, de feição social - apontando que, se existem conflitos entre esses direitos, sobretudo em matéria de tutela e da concepção do papel do Estado, a complementaridade é superior ao conflito para uma lógica do razoável.

Há ponsto de convergência entre os processos históricos de asserção dos direitos de primeira e segunda geração com os direitos de terceira geração - os direitos de titularidade coletiva.

Os direitos humanos foram sendo conjugados com a soberania nacional, consoante o modelo da Revolução Francesa.

A convergência entre os direitos de primeira,s egunda e terceira geração baseara-se num pressuposto implícito: o padrão de normalidade era a distribuição, em escala mundial, dos seres humanos entre os Estados de que eram nacionais - um padrão que as realidades históricas do primeiro pós-guerra colocaram em questão.

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O problema dos seres humanos supérfluos e como tais encarados, postos pela experiência totalitária e juridicamente ensejado pela privação da cidadania, criou as condições para o genocídio, na medida em que foram levados, por falta de um lugar no mundo, aos campos de concentração.

O genocídio não é um crime contra um grupo nacional, étnico, racial ou religioso. É um crime que ocorre, lógica e praticamente, acima das nações e dos Estados - das comunidades políticas. Diz respeito ao mundo como um todo. É, portanto, um crime contra a humanidade que assinala , pelo seu ineditismo, a especificidade da ruptura totalitária.

No segundo pós-guerra, a ruptura totalitária levou à afirmação de um Direito Internacional Penal, que procura tutelar interesses e valores de escopo universal, cuja salvaguarda é fundamental para a sobrevivência nãoa apenas de comunidades nacionais, de grupos étnicos, raciais ou religiosos, mas da própria comunidade internacional. Entre estes valores e interesses está a repressão ao genocídio.

O processo Eichmann se baseou em categorias jurídicas tradicionais que seguiam a lógica do razoável, logo, foram insuficientes para lidar com a não-razoabilidade do crime do genocídio. Indico, inspirado por Hannah Arendt, como o crime do genocídio, administrado por Eichmann e perpetrado no corpo do povo judeu, é um crime contra a humanidade porque é uma recusa frontal da diversidade e da pluralidade - características da condição humana na proposta arendtiana de um mundo centrífugo.

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