Rebatendo Samuel Huntington
Texto de Samuel Huntington:
Choque do futuro
Veja: Reflexões para o futuro -- 1993
A rota de colisão entre civilizações dominará a política mundial, sustenta o cientista político americano. Seu posto de observação é o Ocidente, que Huntington vê ameaçado num mundo em que governantes, nações-Estados e ideologias foram morrendo. (Texto completo aqui)Texto de Samuel Huntington:
Choque do futuro
Veja: Reflexões para o futuro -- 1993
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Texto que rebate Huntington:
Não ao fracasso
Wanderley Guilherme dos Santos -- Veja: Reflexões para o futuro -- 1993
Análises políticas de alto risco costumam contrariar ortodoxias e desprezar piedosos otimismos quanto ao futuro. O choque de civilizações ratifica a reputação de seu autor, Samuel Huntington, de exímio adepto de provocações de altíssimo risco. Não será novidade se se tornar objeto da hostilidade intelectual e política de liberais, social-democratas, representantes de heterogêneas minorias, religiosos de todos os matizes e espantados humanistas.Não ao fracasso
Wanderley Guilherme dos Santos -- Veja: Reflexões para o futuro -- 1993
Há cerca de trinta anos, o Brasil e a maioria dos países subdesenvolvidos padeciam da síndrome de crises cumulativas: crise de integração e de legitimidade (na precária aceitação nacional das instituições democráticas vigentes), crise de participação (crescente autonomia da estrutura sindical urbana, surgimento de grupos de interesses organizados, sindicalismo rural), crise de distribuição (reforma agrária, salário, previdência). Contra a corrente que advogava ser possível atender às crises conforme procedimentos democráticos destacou-se uma tendência internacional prevendo, para o Terceiro Mundo, o fatal destino do obscurantismo autoritário. Huntington foi uma estrela guia dessa tendência.
Hoje, o país vive dificuldades de outra sorte. Com um presidente constitucionalmente legítimo e politicamente trôpego, o acelerado crescimento do hiato entre ricos e pobres (sem mencionar miseráveis e desempregados) e a exacerbação do corporativismo como forma privilegiada de associar progresso e liberdade, recuperando sem traumas parte do atraso civilizatório em que se encontram. Mas é de toda conveniência examinar prognóstico que, pelo contrário, antecipam para a região uma permanente subalternidade, numa civilização de segunda classe.
Sucesso e polêmica acompanham Huntington desde que começou a formular o que chamo de silogismo pretoriano - quer dizer, uma sucessão de fenômenos políticos e sociais que têm no autoritarismo um desenlace quase necessário, por oposição ao silogismo democratizante, o encadeamento que tem na democracia a chave de ouro.
Na esteira da descolonização africana e asiática, os teóricos da modernização democrática imaginaram que, aos processos de urbanização, de alfabetização e de difusão da informação, seguir-se-iam o desenvolvimento econômico, a divisão social do trabalho, a criação de grupos de interesse e o alargamento da participação política. Esta, por sua vez, conduziria a mais crescimento econômico, redução nas disparidades de renda e, por fim, à sustentada tendência ao desenvolvimento político. A mobilização social, associada à modernização, acabaria em democracia. Era questão de tempo.
Não, era questão de virtude política, dizia Huntington. "O desenvolvimento político torna a democracia possível, a liderança política a faz real" - essa é a primeira frase do último parágrafo de seu último livro, "A Terceira Onda". Convém examinar as circunstâncias propícias à decadência política, convidava o cientista político americano, pois o regime democrático não resulta apenas de condições antecedentes. Depende sobretudo da qualidade da liderança política e das instituições existentes. Instituições, conceito mágico.
A seu ver é devido à má qualidade das instituições dos países do Terceiro Mundo que o estímulo à participação política não se traduz em maior distribuição de renda nem - o que é fundamental - em estabilidade democrática. Quando as instituições políticas não são diferenciadas, eficientes e solidamente enraizadas, o excesso de participação tende a politizar todas as questões econômicas e sociais, transfigurando qualquer crise em crise institucional. Daí a recorrência da instabilidade política, da intervenção dos militares na política e do autoritarismo. Eis o silogismo pretoriano.
Nesse cenário, nenhuma sociedade democrática sobrevive se não estabelecer limites às pressões que é legítimo exercer sobre ela. Mais: segundo essa obsessão institucional, a pretensão de levar ao pé da letra e até as últimas conseqüências os ideais históricos da sociedade americana - liberdade, igualdade, hostilidade à autoridade - pode comprometer as instituições e as hierarquias, que, frustrando parte daqueles ideais, seriam entretanto essenciais para o funcionamento de um governo democrático. Em lógica de alto risco: excesso de democracia constitui formidável ameaça à democracia. O silogismo está perfeito e acabado.
Mas o que são instituições sólidas ? São as que superaram os desafios a que foram expostas. Tudo bem, não fosse pela recomendação de que não se deve submeter as instituições a desafios, sob o risco de destruí-las. Então, o processo de institucionalização, purificando-a através de desafios, prejudicaria o desfecho da institucionalização ?
O "Choque de Civilizações" é conceitualmente tão frágil quanto o silogismo pretoriano. Considere-se, por exemplo, a tipologia das civilizações sugerida: ocidental, confuciana, japonesa, islâmica, hindu, eslava ortodoxa, latino-americana e, possivelmente, africana. A olho nu, trata-se de uma tipologia borgiana, antiaristotélica, porque viola dois princípios fundamentais de classificação: exaustão e mútua exclusão. Por que não é possível admitir uma civilização oceânica ou melanésia ? Onde ficam os esquimós ? E os maoris ? Por outro lado, se existe uma civilização geograficamente definida, a ocidental, que abriga católicos, judeus e protestantes, mas exclui a América Latina, por que não se pode conceber uma civilização asiática englobando japoneses e confucianos ?
E o que fazer com a pérola etnocêntrica do autor, que, ouvindo um funcionário do governo mexicano discorrer sobre as reformas em curso no seu país, observou: "Impressionante. Parece que vocês querem transformar o México de um país latino-americano em um país norte-americano" ? Aliás, é dito com todas as letras que "os povos podem e, de fato, redefinem suas identidades, e, como resultado, a composição e as fronteiras das civilizações mudam". Tal como a institucionalização, o conceito de civilização de Huntington também não pertence ao mundo acadêmico. Para que serve, então ?
Se não serve para explicar, pode servir para prever. As duas décadas e meia que vão do início dos anos 60 a meados dos 80 viram, na África, na Ásia e na América Latina, o alastramento do autoritarismo que ele prognosticava. Uma análise de alto risco funciona quando suas previsões se convertem em profecias que se autocumprem. Nisso consiste sua periculosidade.
Uma profecia que se autocumpre é aquela que, ao ser anunciada, aumenta consideravelmente a probabilidade de que venha a acontecer de fato. Se um soldado manifesta a opinião de que ele e seus companheiros vão perder o e já está de antemão derrotado. Se outros o acompanham na previsão, o combate será efetivamente perdido. Pois bem: uma análise política de alto risco tenta tornar realidade aquilo que não estava fatalmente na lógica natural das coisas.
Conceitos como "participação disruptiva" ou "excesso de demandas", assíduos na literatura pretoriana, são subjetivos demais para merecer respeito acadêmico. Mas, politicamente, conseguem ser de uma objetividade explosiva. Nunca existiu um "perigo amarelo" antes que se inventasse a expressão. O silogismo autoritário, para se demonstrar, só precisa de atores estratégicos para os quais a lógica autoritária seja conveniente. Durante as décadas de 60 e 70, ele encontrou em todo o Terceiro Mundo seus agentes transmissores e seus oficiais (em todos os sentidos) executores.
Pelas lições do recente período autoritário nos países subdesenvolvidos, não basta revelar a fragilidade das teorias que justificam ou preconizam o autoritarismo se não houver análises de alto risco que tragam embutidas as previsões favoráveis à materialização da democracia.
Da mesma maneira, se haverá ou não um confronto de civilizações é impossível antecipar com certeza científica. Pode ocorrer, caso não se cultivem os apropriados anticorpos. Por falta deles, assistiu-se no passado ao autoritarismo, patrocinado por blefes analíticos como "excesso de demandas" e "explosão participatória", passar por necessário e inevitável.
Existem poucas coisas necessárias na vida política. Não é necessário que sobrevenha um confronto de civilizações, sobretudo quando estas são definidas de maneira oportunisticamete interessada. Nem existe necessidade de governos fortes no Brasil, por conta de outro conceito pedante e vazio - a ingovernabilidade, o clichê da moda nos meios acadêmicos e fora deles. Não há democracias ingovernáveis, mas democracias mal-governadas, como disse o inglês Richard Rose. E não será por causa de um mau governo que se vai destruir as instituições democráticas, eu acrescento.
O Brasil contemporâneo está sitiado por analistas de alto risco. Eles acreditam, por exemplo, no fantasma da "fujimorização", que ninguém sabe exatamente o que seja, mas que se presume ser o novo vírus autoritário da América Latina. Ajudando a fazer cumprir uma previsão de altíssimo risco, esses analistas transformam-se em instrumentos da mais recente ousadia do brilhante Huntington, para transformar a América Latina numa "civilização" realmente à deriva do resto da humanidade.
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