quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

O Profetismo
"Uma história do Povo Judeu" - Autor: Hans Borger - Editora: Sêfer Ltda - 1999.
Moisés foi sempre considerado o primeiro profeta. Não só por motivos cronológicos mas por ocupar um lugar único na cultura nacional-religiosa israelita, sem nenhuma comparação com seus antecessores - os patriarcas - ou seus sucessores - juízes, reis ou profetas. Tanto assim que, na história e na liturgia de Israel, Abraão, Isaac e Jacob são cognominados avinu, nosso pai, os monarcas sempre são ha-melech, o rei, e o profeta é ha-navi, mas Moisés é rabênu, nosso mestre, o mestre.

A origem da palavra navi é obscura. Parece referir-se a uma pessoa de quem brotam, irrompem palavras, idéias e imagens. É especialmente a partir da época dos juízes que encontramos os neviim, quer individualmente, quer agrupados em "fraternidades", percorrendo o país e pregando em nome de Deus. Às vezes se colocam em estado de arrebatamento por meio do ritmo e da música, mas não recorrem à dança ou ao uso de ervas ou bebidas embriagantes - comum entre outras culturas - para atingir um frenesi individual ou coletivo. Destes extáticos, contudo, os profetas clássicos diferem como difere um hidróscopo de uma vara de condão.

Por mais diferentes que os precursores tenham sido dos profetas clássicos, uns conduzem aos outros. Todos têm um denominador comum e desenvolvem-se dentro dos parâmetros do monoteísmo israelita. Nem precursores e muito menos os profetas clássicos operam num vácuo; eles consideram-se elos numa longa cadeia a partir de Moisés, e todos falam exclusivamente em nome de Javé, o Deus de Israel, não constando nenhum único caso de algum profeta israelita ter falado em nome de outro deus.

Assim, encontra-se, a partir de meados da época dos juízes, ao lado dos meros oraculistas, neviím que, individualmente e sem vínculo com grupos organizados ou com instituições, em vez de êxtase, pregam a ética. São homens - às vezes mulheres - carismáticos, que atuam como uma espécie de porta-voz de Deus. O conceito do profeta como "boca de Deus" é antigo (Exodos - 7:1,2), é uma função que ele não escolhe, mas para a qual se acha designado, muitas vezes contra sua própria vontade e quase sempre para dizer o que os outros não querem ouvir. O naví é escolhido por Deus e irresistivelmente compelido a comunicar aos outros a sua mensagem. Ele só fala quando assim mandado e, uma vez recebida a ordem, quer queira quer não, tem que falar.

O mais conhecidos entre os precursores do profetismo clássico são Elias e Eliseu, representando um estágio intermediário entre os extáticos e os profetas literatos que, a partir de meados do século VIII, transmitem seus ensinamentos por escrito. Surpreendentemente não são só os profetas pertencentes à classe alta que escrevem sua mensagem, como isaías, membro da aristocracia jerosolemita, ou Jeremias, descendente de uma tradicional família sacerdotal, porém igualmente pessoas de origem humilde como Amós, um pastor das estepes de Judá.

Muitos reis estavam habituados a recorrer aos serviços de videntes porém, via de regra, sabiam distinguir muito bem entre a palavra de um Natan ou um Elias e a de um "profissional" pago para predizer a sorte, de preferência boa. Há um bom exemplo em 1.Rs.22, que descreve como Ahab, rei da Samária, e Jeosafat, de Judá, se aprontam para uma batalha contra Ben Hadad, rei de Damasco. Quatrocentos profetas de Ahab prometem vitória, mas Jeosafat insiste em perguntar se não havia "mais um outro, um profeta do Senhor", e Ahab diz "sim, há um, mas eu o detesto, pois ele sempre profetiza o mal !". (1.Rs.22:8)

Durante três séculos, a seqüencia dos profetas clássicos hebreus constitui um fenômeno totalmente ímpar na História. Diz-se Profetas hebreus, porque o idioma hebraico é um elemento fundamental do seu poder de comunicação. O profeta sempre é um gênio da linguagem, cujo ritmo e simbolismo desafiam mesmo o mais brilhante tradutor a alcançar um inimitável original.

Na base da mensagem do profeta de Israel está o domínio universal da justiça, da justiça social entre os homens e da justiça pública no convívio entre as nações. Todos, indivíduos ou povos, estão sempre submetidos ao juízo do eternamente Justo, Javé, o Protetor dos pobres, dos órfãos e das viúvas, nunca dos ricos e famosos. Por acostumar-e a ver nos males econômicos a raiz da decadência das nações, sucumbe-se facilmente à tentação de perceber os profetas vestidos de visionários da redenção da humanidade por intermédio de plataformas sociais. É uma linguagem sem dúvida sedutora, mas não se pode transformar Amós em precursor de Marx sem privar a mensagem profética de sua inalienável dimensão religiosa.

A realidade vista pelo profeta é diferente da de outros homens. É uma realidade paradoxal, que despreza as conveniências do momento e faz do profeta sempre o arquiinimigo do pragmatismo - politicamente tantas vezes transformado em virtude -, pois seu alvo não é o que pode, mas o que deve ser. Já que nunca consegue o que quer, está sempre exasperado, sempre um desafeto dos poderosos e sempre alvo dos que, com impaciência e desespero, bradam, na expressão de Oséias: "o profeta é um louco". (Os.9:7)

Os profetas são invariavelmente supra-nacionais, tanto faz se originários de Judá ou da Samária. Suas palavras são sempre dirigidas a toda a Nação como se não existissem dos estados separados. Samária e Judá são uma unidade, são Israel "de Dan a Beersheba". Povo e reis - com poucas exceções - respeitam a palavra e honram a integridade física do profeta, e nenhum dos profetas clássicos denota qualquer ambição pessoal de liderança ou de poder.

Talvez a relevância histórica de Amós e de Jeremias nasça do fato de suas mensagens terem sido emitidas em épocas de enormes tensões sociais, épocas marcadas pela ascensão e queda de superpotências consideradas inabaláveis. Tentaram transmitir a lição moral de que o poder corrompe e de que a pobreza e a injustiça constituem problemas éticos por cuja solução o homem será responsabilizado individual e coletivamente. Para o homem pensante, Amós, Isaías e Jeremias permanecem, decorridos vinte e cinco séculos, gigantes espirituais de mensagem universal.

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