sábado, 15 de novembro de 2008

Desafios da ética no mundo globalizado
Leonildo Correa -- Trabalho da disciplina Ética profissional -- 2006 -- Prof. Eduardo Bittar - Faculdade de Direito - USP

Resumo

A história humana, ao longo de sua evolução, passou por uma série de estágios que mudou o próprio homem, assim como sua cultura e seus costumes. Logo, também mudou a sua ética. Nesse contexto, a realidade atual, era globalizada, enfrenta desafios e problemas ocasionados pelas novas variáveis que surgiram no sistema, seja a globalização do individualismo, a hegemonia do econômico e da propriedade privada ou o choque de civilizações, culturas e costumes, ocasionado pelas movimentações humanas no planeta.

Todos esses casos desafiam o comportamento ético, a responsabilidade social e o exercício profissional na atualidade, pois impõe a necessidade de escolher entre o humano e o lucro, entre o certo e o rentável, etc. Esses são os dilemas impostos por um sistema que por sua própria natureza é anti-ético, pois vive da exploração humana, da apropriação de recursos públicos e da privatização de conhecimentos acumulados pela humanidade ao longo de sua história.

1. Introdução

Esse trabalho tem por objetivo analisar alguns aspectos da ética no mundo globalizado. Aspectos que afetam o comportamento ético como um todo, inibindo, neutralizando ou eliminando-o das ações humanas. Aspectos que relacionam a ética com a responsabilidade social e o exercício profissional no âmbito do sistema capitalista.

Para fazer essa análise o trabalho foi dividido em quatro partes: 1- Evolução da economia e da sociedade; 2- A globalização do individualismo; 3- O poder econômico e a propriedade privada; 4- O choque de civilizações, culturas e costumes.

A primeira parte - Evolução da economia e da sociedade - analisa brevemente as modificações e a evolução que levou até à globalização, ou seja, a passagem da sociedade tribal para a agrícola, da agrícola para a industrial e da industrial para a era global. Mudanças que modificaram a economia, a sociedade e o próprio homem. Logo, também modificou a ética vigente.

A segunda parte - A globalização do individualismo - avalia a principal característica da atualidade: o individualismo exacerbado que contamina toda a sociedade e corrói as bases do coletivismo. Esse individualismo é acompanhado por uma ética específica: a ética individualista que cerceia e censura os interesses da coletividade.

A terceira parte - O poder econômico e a propriedade privada - faz um breve panorama da hegemonia da economia sobre todas as coisas e da apropriação do patrimônio público e da transformação do conhecimento acumulado pela humanidade, ao longo de sua história, em produtos e serviços monopolizados por pessoas ou grupos.

A quarta parte - O choque de civilizações, culturas e costumes - avalia a questão dos movimentos humanos pelo planeta, principalmente os casos dos imigrantes ilegais e dos refugiados não-reconhecidos. Esses grupos, ao se deslocarem, levam consigo sua civilização, sua cultura e seus costumes. Logo, carregam junto consigo sua ética. Contudo, sendo ilegais ou não-reconhecidos transformam-se em presa fácil dentro das nações desenvolvidas. Pior do que isso, não possuem cidadania nem direitos civis ou políticos, pois inexistem perante o Estado oficial.

Todas essas questões estão acontecendo neste exato momento. Questões gravíssimas que estão na penumbra ética. Por isso não são abordadas. Porém, é preciso descortinar e revelar esses fatos, denunciando as incoerências entre o discurso e a prática, os detalhes escondidos que possibilitam a manipulação e o desvirtuamento dos interesses da coletividade em benefício de pessoas ou grupos privados.

É fácil falar em ética. É fácil exigir ética dos outros. Porém, é difícil ter um comportamento ético, agir com responsabilidade e compromisso social, no exercício da profissão, quando se está inserido em um sistema que por sua própria natureza é anti-ético, vive da exploração humana.

2. Evolução da economia e da sociedade

De acordo com Crawford (1994, p.18), o mundo experimentou três profundas mudanças na base da economia e da estrutura social. Na primeira fase do desenvolvimento econômico os homens passaram de uma economia tribal, de caça e coleta, para uma economia agrícola.

Na segunda fase, os homens saíram de uma economia agrícola e chegaram a uma economia industrial. Essa etapa teve início na Grã-Bretanha há aproximadamente 250 anos e espalhou-se pela Europa Ocidental, América do Norte e Japão no século XIX. Porém, a grande arrancada aconteceu após a Segunda Guerra Mundial com a difusão extensiva das indústrias pela Ásia e parte da América Latina.

A grande marca da primeira revolução industrial foram as profundas mudanças culturais, representadas pelo fortalecimento da burguesia, do êxodo rural e do conseqüente nascimento da mão-de-obra operária. Já a segunda revolução industrial refletiu socialmente o crescimento demográfico, a necessidade de ampliar a oferta de emprego e, principalmente, a transformação das sociedades e das nações, que começavam a abandonar o hermetismo, redescobrindo o comércio exterior como fonte de novos mercados.

A terceira fase da história econômica e social, a era globalizada propriamente dita, é marcada pelo desenvolvimento da economia e da sociedade baseada no conhecimento. Este processo começou nos Estados Unidos na década de 80 e, atualmente, está se disseminando rapidamente tanto na América do norte como nos demais países industrializados da Europa Ocidental e Japão. Nessa etapa as variáveis críticas e fundamentais são informação e conhecimento.

Nesse sentido Silva (2002, p. 10) afirma que:

"No Brasil há exemplos disso: itens destacados da pauta de exportações brasileira, representando mais de US$ 2 bilhões/ano, são as aeronaves da Embraer, em cuja base industrial está o conhecimento dos engenheiros formados pelo Instituto de Tecnologia Aeronáutica (ITA), em São José dos campos, no Vale do Paraíba (SP); a soja nacional que tem a maior produtividade do mundo é resultante do conhecimento desenvolvido pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e gera divisas anuais de US$ 3 bilhões. Sem contar o avanço da citricultura em São Paulo e o crescimento acentuado da Petrobrás na exploração de petróleo em águas profundas e alto-mar.

Nesse novo contexto o fator humano é o elemento central do processo, pois são as pessoas que dominam, retém e aprimoram o saber, transformando-o em conhecimento, capital intelectual – produtos e serviços. Em outras palavras,
(...) a atualidade é uma época em que a riqueza fixa (terras, equipamentos, imóveis, etc.) está sendo cada vez mais substituída por riqueza móvel (pessoas, informação, competências, know-how, conhecimento, etc.). Para comprovar isso, basta verificar as características de algumas empresas globais, por exemplo: a maior indústria de tênis do mundo, a Nike, não tem fábrica; a livraria de maior crescimento no mundo, a Amazon, não tem lojas; a Lotus foi vendida à IBM, por quinze vezes seu valor patrimonial; a Microsoft vale em bolsa cem vezes o valor do seu ativo tangível; a filial americana da Nokia fatura 200 milhões de dólares com 5 empregados. O tangível está cedendo lugar ao intangível." (TEIXEIRA FILHO, 2004, p. 5).

Portanto, ao longo da história humana ocorreu uma evolução progressiva das formas de produção e trabalho, evoluindo de uma economia agrícola, assentada sobre o trabalho braçal; para um modelo industrial, dependente do trabalho manual do operário; e chegando a uma economia globalizada, baseada no conhecimento e dependente do intelecto humano.

Nessa evolução econômica e social o homem mudou completamente, assim como seus costumes, seus pensamentos, seu comportamento, sua forma de ver e compreender os seus semelhantes e o mundo que o envolve.

Como a ética está diretamente ligada ao comportamento e às escolhas humanas, pode-se dizer que ela foi profundamente influenciada e reconstruída ao longo dessas revoluções. Isso se aplica tanto a especulação ética, entendida como o "estudo dos padrões de comportamento, das formas de comportamento, das modalidades de ação ética, dos possíveis valores em jogo para a escolha ética"; quanto a prática ética, definida como "a conjugação de atitudes permanentes de vida, em que se construam, interior e exteriormente, atitudes gerenciadas pela razão e administradas perante os sentidos e os apetites." (BITTAR, 2002, p.8)

O Prof. Bittar (2002, p. 54) afirma que a sociedade pós-moderna efetuou uma série de substituições, colocando " No lugar da transcendência, a racionalidade, no lugar do manual, o técnico, no lugar da virtude, o lucro, no lugar da unidade, a multiplicidade, no lugar da integração, a fragmentação."
Assim, se por um lado a globalização representa uma evolução da economia e da sociedade, por outro lado ela significa a concretização de uma série de novos conhecimentos, valores, pensamentos, costumes, comportamentos e problemas. Essas novas características irão repercutir fortemente tanto na prática ética, quanto na especulação ética.

Mais do que isso, a realidade globalizada gerou novos instrumentos de dominação e controle e é marcada, principalmente, por uma acentuada desigualdade social; pelo choque de civilizações, cultura e costumes; pelo domínio do econômico sobre todas as coisas; pela deterioração do princípio da dignidade humana; pela manipulação das informações e monopólio do conhecimento, etc.
Além disso, o homem globalizado é marcado pelo individualismo que corrói a ação coletiva, pela banalidade e pela indiferença diante dos problemas e do sofrimento social. Tudo isso reunido e operando em uma sociedade ocasiona a banalização e a relativização de todo comportamento ético.

Contudo, a questão difícil de saber é se essa ética banalizada e relativizada é uma deterioração da ética ou se esse é o modelo característico da sociedade globalizada, ou seja, se esse é o modelo ideal que esse tipo de sociedade demanda. Essa é uma questão difícil de ser julgada, pois os estudos e as análises são contemporâneos ao problema e integram o mesmo sistema. Mesmo assim, é possível descortinar e destrinchar alguns fatos típicos dessa nova realidade, questionando-os do ponto de vista da ética tradicional.

O termo "ética tradicional" é utilizado no sentido de fundamento ético firmado pelos costumes sociais e praticado pela maioria.
Enfim, a história humana foi marcada por grandes transformações que modificaram a economia, a sociedade e o próprio homem. Essas transformações também repercutiram nos comportamentos e nas escolhas dos indivíduos. Hoje, o capital intelectual está no centro das atenções e a globalização é marcada por características que impõe uma reconstrução e uma remodelagem da prática e do costume ético.

Nesse contexto a questão que surge é: na realidade globalizada, é possível conciliar a ética com a responsabilidade social e o exercício profissional?

3. A globalização do individualismo

Uma das características fundamentais da era globalizada é o individualismo que trabalha intensamente contra o domínio dos interesses da coletividade. Essa característica é inerente ao próprio sistema capitalista que está assentado sobre o livre mercado, a livre iniciativa e a propriedade privada.
Junto com o domínio do individualismo reina a ética individualista que, de acordo com o Professor Bittar (2002, p. 48), consiste:

"(...) no conjunto de práticas de conduta que, dispersivamente, o indivíduo exerce única e exclusivamente com consciência de si, tendo como finalidade de sua atuação a realização pessoal e isolada de seus valores e desejos, não importando os meios para o alcance dessa realização, muito menos as conseqüências e os resultados das atitudes direcionadas para a sua auto-realização."

À ética do individualismo se contrapõe a ética do consenso que, de acordo com o Professor Bittar (2002, p. 49), consiste:
"(...) no conjunto estável de práticas de conduta que o indivíduo exerce com consciência de sua inserção social, em seus múltiplos papéis e funções, tendo como fim sua realização pessoal, que só se perfecciona na medida em que da adequação entre meios e fins surgem resultados vantajosos para si, com um mínimo de lesão do outro e com a causação de um máximo de engajamento, infiltrações e melhorias na vida alheia."

As conseqüências do domínio do individualismo e da ética individualista na sociedade globalizada pode ser vislumbrada na indiferença dos indivíduos, sejam pessoas comuns ou autoridades públicas, diante dos problemas e do sofrimento social, assim como na deterioração do princípio da dignidade humana, fundamento do constitucionalismo ocidental.

Assim, de acordo com o Prof. Bittar (2002, ):

(...) quando as éticas individualistas se sobrepõem em autoridade à ética do consenso deixa-se de optar pelo que é comum, pelo que é público, pelo que é coletivo, pelo que é de interesse geral... fazendo-se com que a esfera pessoal se sobrepuje a todo e qualquer mecanismo de conscientização macroética.

Nesse contexto, o domínio da lógica do individualismo e da ética individualista enterra e elimina toda responsabilidade social, pois o que importa é o indivíduo em si e aquilo que pode ganhar sendo o que é. Além disso, a própria lógica do sistema vigente, com sua força inexorável, empurra o indivíduo para o comportamento individualista.

Certamente, não se quer e nem se busca o fim de todo individualismo, contudo, esse tipo de estado humano, assim como a ética a ele inerente, devem ser dosados e limitados. E diante do conflito individualismo x coletivismo, os interesses desse último devem prevalecer. Em outras palavras, a coletividade derroga os interesses individuais quando estes conflitam.

Contudo, a pior faceta do individualismo deriva de suas conseqüências, das suas repercussões no contexto social, que corroem as bases da coletividade e da sociedade, pois se cada um só pensa em si, ninguém pensa no todo.

Mais do que isso, o individualismo impõe silêncio e indiferença diante dos problemas sociais. Ninguém é responsável, ninguém é culpado, ninguém tem nada com isso. E essa lógica individualista mata a responsabilidade e o compromisso social, não só dos homens, mas também das organizações que comandam.

Assim, da perspectiva individualista o exercício profissional é a busca da felicidade pessoal, é uma forma de enriquecimento e sucesso. Logo, justifica-se a obtenção de lucro a qualquer custo, pois os fins justificam os meios.

Além de não se importar com o social ou coletivo, a lógica individualista é indiferente ao outro como ser humano, pois cada um é responsável pelo que faz, pelo que vive, pelo que é. Não importa as injustiças, as desumanidades e as desigualdades existentes, pois ninguém é responsável, ninguém tem culpa, ninguém tem nada com isso.

Essa indiferença pelo outro leva, inevitavelmente, a uma deterioração do princípio da dignidade humana em todos os níveis e áreas. O homem como ser humano deixa de ser importante e relevante nas decisões, seja pública ou privada. E a única coisa que interessa é o que se pode ganhar individualmente com cada ato que se pratica.

Um exemplo que ilustra bem essa realidade são as greves no setor público. Greves nas quais os servidores, pleiteando benefícios e vantagens pessoais, paralisam serviços públicos essenciais para a sociedade: hospitais, segurança pública, INSS, universidades, bancos, etc, prejudicando, com essa ação, principalmente as camadas mais pobres da população. Qual é a responsabilidade social desses servidores? Prejudicar milhares de pessoas por tempo indeterminado, pleiteando benefícios pessoais, é uma conduta ética?

Outro exemplo são os aumentos abusivos pleiteados pelo judiciário e pelo legislativo, ou seja, enquanto a maioria da população recebe salário mínimo e não pode receber aumento superior a 5%, os órgãos máximos da república, que recebem salários milionários, se auto-concedem aumento superior a 91%.

O individualismo e a ética individualista desses administradores públicos derroga e afronta os interesses da coletividade, eliminando o compromisso e a responsabilidade social de órgãos, que por sua própria natureza, são públicos e de índole coletiva. Pior do que isso, tornam a função pública que exercem uma atividade profissional nociva para os cidadãos.

4. O poder econômico e a propriedade privada

Na realidade globalizada, ao lado do individualismo exacerbado, corre a hegemonia do econômico que reina sobre todas as coisas. Tudo tem seu lado econômico e é, justamente, esse lado que é considerado nas decisões. Quem tem poder econômico, tem poder jurídico, poder político, autorização para ser injusto, cruel, opressor, tirânico e dominante.

O domínio do econômico significa o domínio da propriedade privada. Ter poder econômico significa ter uma grande quantidade de propriedades e recursos privados, seja bens móveis ou imóveis, seja fungíveis ou infungíveis, etc. Contudo, a constituição dessa propriedade, no sistema vigente, é realizada pela exploração dos trabalhadores ou pela privatização do patrimônio público.

De acordo com Bihr (2006):

"A sacralização da propriedade individual, à custa das diferentes formas da propriedade pública e da propriedade social, baseia-se em várias confusões grosseiras. Em primeiro lugar, sobre a natureza do bem possuído: na verdade, colocam-se, ao mesmo tempo, no mesmo plano, os bens de uso pessoal, dos quais os indivíduos desfrutam sozinhos ou com sua família, e os meios necessários à produção (terra, imóveis, infra-estruturas produtivas, fábricas e estabelecimentos comerciais etc.). A segunda confusão, muito mais grave, baseia-se no próprio conteúdo da relação de propriedade. Colocam-se, então, no mesmo nível, a posse de um bem que, de uma maneira ou de outra, provém do trabalho pessoal de seu proprietário, e a posse de um bem que resulta da apropriação privada do todo ou de parte de um trabalho social. Um dos objetivos e principais resultados da desregulamentação e da privatização dos últimos 20 anos foi aumentar a esfera da propriedade privada."

Para Bihr (2006), confusões como essas, na verdade, mascaram a grande contradição que se encontra no cerne da apropriação privada do trabalho socializado, e que constitui a própria essência da propriedade capitalista. Assim, é o trabalho socializado que o capital encerra na propriedade privada, de modo que os resultados de uma imensa acumulação de operações produtivas sejam apropriadas por poucos indivíduos ou grupos sociais limitados.

Por exemplo, a posse de uma habitação por um indivíduo, fruto de seu trabalho pessoal, é confundida com a propriedade privada de meios de produção (de empresas), que decorre da acumulação dos frutos do trabalho de dezenas e até de centenas de milhares de assalariados, durante décadas. A forma capitalista de propriedade, sob a qual se realiza a dominação e a exploração do trabalho assalariado, pode então apresentar-se como a condição e o fruto da liberdade pessoal.

E a exploração é tão banal e corriqueira que parece ser coisa natural do homem e da vida humana.

Nesse sentido o Prof. Bittar (2002, p. 84) alerta:

"Quando os valores humanos passam a se curvar ante a dominância econômica e a reificação ("coisificação") das relações humanas, num contexto de capitalismo emergente, todos os fundamentos do agir social passam a se delinear de acordo com a ordem econômica. É assim que o império do capital, com seus imensos tentáculos, corrói, pouco a pouco, todo o edifício ético que procura se manter ereto na defesa dos interesses sociais que transcendem ao materialismo econômico.

E de acordo com Bihr (2006):

"Paralelamente, o capital financeiro multiplica as pressões para se apoderar das formas socializadas da relação salarial: os vários sistemas de proteção social edificados durante décadas. Por exemplo, a transformação dos regimes de aposentadoria por distribuição em benefício dos fundos de pensão ou os incentivos fiscais para desenvolver fórmulas individuais de economia salarial. Os seguros privados, cuja máxima é “a cada um de acordo com seus meios (de contribuição)”, buscam apropriar-se de parte da riqueza social, produto do trabalho, até o presente mais ou menos redistribuído sob a forma de fundos públicos ou sociais. A vontade da apropriação “total”.

Bihr (2006) salienta ainda que a área mais recente da ofensiva capitalista é a da apropriação privada dos conhecimentos científicos, assim como dessa forma particular de patrimônio comum da humanidade que são os mecanismos de produção e de reprodução biológica e a biodiversidade. Atualmente, o capital quer açambarcar todas as condições materiais e intelectuais do processo de produção, obra do trabalho histórico, social da humanidade.

Assim, assinala Bihr (2006), cada vez que um grupo farmacêutico efetua a patente de um medicamento, ele se apropria dos conhecimentos científicos produzidos socialmente e financiados publicamente. Pois o produto patenteado é sempre conseqüência de uma longa acumulação geral de conhecimentos, que independe do grupo que o patenteou e, ao mesmo tempo, resultado do trabalho preciso de pesquisadores que, muitas vezes, trabalham nos laboratórios públicos e universitários de um ou de vários países. A patente organiza e defende juridicamente esse processo de expropriação de pesquisadores e dos países que os financiam. Ela permite, subseqüentemente, que os grupos oligopolistas transformem o saber social, assim privatizado, em mecanismo de extração de fluxo de rendas e em instrumento de dominação social e política.

Nesse ponto o que se quer saber é como chegamos a isso, ou seja, que tipo de estrutura social construiu essa realidade atual. E a resposta é dada pelo Prof. Bittar (2002, p.54) que assinala:
A pragmatização da sociedade, pós-Revolução Industrial, pós-Revolução Atômica... tornou obsoleto o tema da ética, esvaziando-o de sentido, fazendo com que sofra constantemente de uma discriminação ante as predominantes mentalidades monetaristas, que dissolvem todos os valores humanos em valores econômicos, e reduzem toda capacidade a uma capacidade laboral e produtiva.

Assim, a lógica capitalista transforma pessoas, injustiças e desigualdades em números e estatísticas, perdendo, com isso, a dimensão do sofrimento e das carências humanas.

E o que dizer da ética ? Como ela sobrevive nesse contexto de opressão, exclusão e exploração ? Para o Prof. Bittar (2002, p.56):

"A ética tornou-se assunto démodé, sobretudo nas sociedades contemporâneas fortemente imiscuídas num modelo utilitarista, burguês e capitalista de vida, sugadas que estão pelas noções de valor econômico e de lucro.
Mais do que isso, um comportamento ético não é compatível com a exploração capitalista nem com a lógica da apropriação privada do patrimônio público ou do conhecimento histórico, social acumulado pela humanidade. Nessa mesma linha é válido ressaltar que a ética não aceita o domínio do econômico sobre todas as coisas e nem tolera a transformação de homens em números.

Para o Prof. Bittar (2002, p.85):
"(...) a carência de escrúpulos nas relações profissionais é um dos principais fatores de fortes injustiças pessoais e sociais. Onde está a ganância, o poder, a hegemonia de mercado, a sede de enriquecimento fácil e rápido não estão a solidariedade, a consciência cidadã, a ética da tolerância, a valorização do progresso social."

E o resumo de tudo isso é que o próprio sistema capitalista é um sistema anti-ético, baseado no poder econômico, oriundo da propriedade privada, que possibilita a exploração e a opressão da coletividade, reduzindo ao mínimo toda responsabilidade e compromisso social. E nesse contexto todo exercício profissional é reduzido a apenas dois, de um lado aqueles que exploram e de outro os explorados. De um lado os donos dos meios de produção e da propriedade privada e do outro aqueles que não têm nada, a não ser a mão-de-obra que terão, obrigatoriamente, que vender para sobreviverem.

Dois grupos, duas éticas e toda a história da humanidade entre eles, na eterna repetição da luta de classes.

5. Choque de civilizações, cultura e costumes

Em um mundo cada vez mais mais globalizado, pessoas e grupos humanos estão em constante movimento. Assim, as civilizações, as culturas e os costumes se aproximam, interpenetram-se e chocam entre si. Nesse entrecruzamento humano qual ética deve prevalecer? Existe uma ética dominante?

Essa questão pode ser ilustrada pelo grande número de minorias, imigrantes e refugiados que percorrem o planeta em busca de abrigo nas nações desenvolvidas. Indivíduos que ao se deslocarem levam consigo seus comportamentos, sua religião, seus costumes, sua cultura, ou seja, sua própria civilização para dentro de outros Estados. Logo, levam também sua ética.

Nesse sentido, Huntington (1997, p.28) afirma que:

Os pressupostos filosóficos, os valores subjacentes, as relações sociais, os costumes e as formas de ver a vida de forma geral se diferenciam de modo significativo entre as civilizações. A revitalização da religião em grande parte do mundo está reforçando essas diferenças culturais. As culturas podem se modificar e a natureza de seu impacto sobre a política e a economia pode variar de um período para outro. Contudo, as principais diferenças em desenvolvimento político e econômico entre as civilizações estão nitidamente enraizadas em suas culturas diferentes.

Ainda de acordo com Huntington (1997, p.46):

"Civilização e cultura se referem, ambas, ao estilo de vida em geral de um povo, e uma civilização é uma cultura em escrita maior. As duas envolvem "os valores, as normas, as instituições e os modos de pensar aos quais sucessivas gerações numa determinada sociedade atribuíram uma importância fundamental". Para Braudel, uma civilização é "um espaço, uma 'área cultural', (...) uma coletânea de características e fenômenos culturais". Wallerstein a define como "uma concatenação especial de visão do mundo, de costumes, de estruturas e de cultura (tanto a cultura material como a alta cultura), que forma alguma espécie de totalidade histórica e que coexiste (ainda que nem sempre de forma simultânea) com outras variedades desse fenômeno". Segundo Dawson, uma civilização é o produto de "um processo especialmente original de criatividade cultural que é o trabalho de um povo em particular", enquanto que para Durkheim e Mauss ela é "uma espécie de ambiente moral que abrange um certo número de nações, sendo cada cultura nacional apenas uma forma especial do todo". Para Spengler, uma civilização é "o destino inevitável da cultura (...) os estados mais exteriores e artificiais dos quais é capaz uma espécie de humanidade desenvolvida (...) uma conclusão, a coisa-que-é se sucedendo à coisa-que-está-sendo". A cultura é o tema comum em praticamente todas as definições de civilização."


Mas como a ética se relaciona com cultura ? Essa questão é respondida pelo Prof. Bittar (2002, p. 64) que ressalta:

"É impossível dissociar a ética da cultura. Toda cultura exprime uma ética coletiva. Toda ética é a expressão de uma determinada endogenia cultural. Isto porque a cultura é o registro coletivo das práticas humanas determinadas no tempo e no espaço. De todo ato humano se desprende uma certa impregnação de cultura. (...) As histórias de um povo, de uma civilização, de uma cultura, de uma nação, de uma etnia, sempre estão e estarão jungidas às opções feitas por gerações anteriores que determinam a cultura e os procedimentos das gerações posteriores, que modificam e revolucionam esse acervo conforme suas inclinações — ou conservadoras, ou inovadoras. (...) É assim que a ética nasce, claramente, pressionada por influências culturais trazidas da educação e da experiência de vida retiradas das condições sócio-econômico-políticas de um povo."

A face mais assustadora desse fato pode ser vislumbrada na situação dos imigrantes ilegais que estão inseridos nas nações desenvolvidas. Pessoas que não possuem cidadania, logo não possuem direitos civis e nem políticos, pois elas inexistem perante o Estado oficial. Contudo, influenciam e alavancam a economia do país, chegando a representar mais de 20% da mão de obra em exercício. Essa é a média de imigrantes ilegais nos países desenvolvidos.

Se não existem perante o Estado oficial, não tem acesso aos serviços públicos e nem à proteção do Estado, logo estão sujeitas a todos os tipos de ataques a sua integridade física e moral, incluindo a própria escravidão.

Assim, o choque entre civilizações, culturas e costumes não leva só a um conflito de éticas, mas a um cenário de ausência completa de comportamento ético e desumanidade generalizada, perpetrada tanto pelos cidadãos comuns quanto pelos próprios Estados oficiais, defensores dos Direitos Humanos, das Democracias, etc.
Contudo, o Estado somente reconhece direitos e protege as liberdades públicas de seus nacionais, lançando os imigrantes ilegais, os refugiados não-reconhecidos, etc a uma situação de completa desproteção, porém, esse mesmo Estado conta em seu PIB as riquezas produzidas por essa mão-de-obra barata.

Mas o Estado não ganha só nisso, pois também obtém proveito no fato dessa mão-de-obra não ter acesso aos serviços públicos, ou seja, não utilizam os serviços de saúde, educação, etc, fornecidos gratuitamente pelo ente estatal. E o pior de tudo, não é o fato de existir essas situações, mas sim o fato das autoridades públicas dessas nações, assim como a maioria de seus cidadãos, saberem da existência desse problema e, ao invés de resolvê-lo, preferem manter o modelo atual para tirar proveito dos necessitados.

Portanto, o choque entre civilizações, culturas e costumes impulsionados pela globalização leva a um estado de completa supressão do comportamento ético, ausência total de responsabilidade social do Estado por minorias imigrantes e a um exercício profissional de escravos. Tudo isso ocorrendo em pleno século XXI.

6. Considerações finais

Depois de apresentados esses fatos e questões que desafiam, banalizam e relativizam a ética surge a questão inevitável: Qual é a saída?

Contra o individualismo, o antídoto é a ética do consenso que, de acordo com o prof. Bittar (2002, p. 49):
A ética do consenso busca, como característica própria, a auto-realização sem sufocar a realização de outros, mas pelo contrário com a verificação de que é possível a convivência entre as auto-realizações dos indivíduos que mutuamente se sustentam em convívio. A ética do consenso projeta-se para a universalidade porque garante a sobrevivência da espécie, ou, mais que isso, permite a sua progressão cultural, e não aniquilatória, fazendo-se das diferenças intersubjetivas pontos favoráveis para o crescimento do que é comum a todos.

Assim, para o prof. Bittar (2002, p. 50),

"(...) a ética do consenso substitui as éticas individualistas, e, mais que isso, protege as éticas individuais, permitindo que existam, que floresçam, que subsistam, que se proliferem, que se manifestem, que reivindiquem espaço... Permitir o florescimento das éticas individualistas é permitir a própria aniquilação delas por si mesmas."

Contra o domínio do econômico sobre todas as coisas, a apropriação do trabalho social por pessoas ou grupos e a privatização do conhecimento acumulado pela humanidade uma solução possível é, de acordo com Bihr (2006):

"(...) a propriedade privada de meios sociais de produção (meios produzidos por um trabalho socializado e que podem ser colocados em ação somente por um trabalho socializado) deveria dar lugar a uma concepção completamente diferente. A propriedade desses meios deveria caber à sociedade (potencialmente, à humanidade como um todo). Um primeiro passo consistiria em confirmar a superioridade do direito dos trabalhadores sobre o dos proprietários – acionistas e administradores – principalmente no que diz respeito às decisões que afetam diretamente suas condições de trabalho e de existência. Mas é preciso também defender o princípio de que as questões relativas à produção e ao uso desses meios – os locais de sua implantação, as opções tecnológicas para seu desenvolvimento – deverão resultar da decisão de toda a sociedade."

Além disso, Bihr (2006) considera que a apropriação privada dos equipamentos coletivos, dos serviços públicos, dos fundos socializados de proteção social deveria ser considerada fundamentalmente ilegítima. Da mesma maneira, qualquer indivíduo tem direito a uma parte da riqueza produzida, resultado de um trabalho vivo amplamente socializado, e de um trabalho anterior acumulado sob a forma de conhecimentos científicos e de meios de produção, que são produto de toda a humanidade anterior.

E o Prof. Bittar (2002, p.85) finaliza:

"Se a economia é indispensável, deve-se admitir que sua prática não está dissociada de outras práticas (sócio-culturais, éticas, políticas, jurídicas, costumeiras...), e, nesse sentido, deve adequar-se para que convirja em fins com as demais que a circundam. Em suma, quando o econômico está a reger a orquestra, a sinfonia é a do individualismo e não a do coletivismo. Desmantelar essa ideologia e desmascarar suas armadilhas é o dever de toda ética."

Contra o choque de civilizações, culturas e costumes a melhor saída é a adoção das idéias de ética do plural e ética global.
A ética global consiste na formação de um corpo ético derivado de comportamentos comuns a todos os habitantes do planeta. Isso seria possível, de acordo com Coimbra (2002, p.113), porque o homem aprendeu que, à margem da ética, sua história é uma sucessão de abusos, de excessos, de violência e da prepotência dos mais fortes. Assim, só o poder da ética global pode guiar a humanidade da aldeia global pelo caminho da paz, da ordem, da harmonia, da justiça, da solidariedade, da igualdade.

Além disso, o homem está dotado de natureza ética, e os comportamentos antiéticos, cada vez mais, são insustentáveis. A ética solapa o poder quando este não é ético. O poder antiético torna-se insubsistente - permanecendo cada vez menos tempo na cabeça da empresa ou da nação ... ou da aldeia global.

Ainda de acordo com Coimbra (2002, p.113), o surgimento da ética global pode ser vislumbrado em dois movimentos: um construtivo e outro destrutivo: O primeiro é a globalização do conhecimento nobre especificamente ético-social, que aninha não só na cultura ocidental, mas nas principais culturas da Terra e até no íntimo das culturas mais pobres e primitivas. O segundo movimento é o desabamento das estruturas ultrapassadas e corruptas. Hoje não se admitem mais o desvio de recursos públicos, o suborno, o crime organizado por máfias ou estadistas. Ao igual, tornaram-se insustentáveis as discriminações raciais, da mulher, dos fracos, das etnias, das castas, das classes, etc. Tudo isso não se suporta mais e desmorona por si só, abrindo passo à ética global.

Já a ética plural, de acordo com o prof. Bittar (2002, p. 44) reúne: O essencial de toda ética, para que sobreviva como tal, e não se transforme em puro arbítrio axiológico (faço de minha vontade a vontade de todos), é que garanta e defenda o desenvolvimento de outras alternativas éticas, desde que estas também sejam éticas distanciadas do arbítrio axiológico. (...) o que torna determinada doutrina ética arbitrária é o fato de prever como programa próprio de realizações a exclusão de outras éticas, até a sua total e absoluta predominância sobre os espíritos e as consciências. Esse tipo de tirania ética, em verdade, constitui-se em desregramento ético, e passa a representar a maior das violações, a saber: a intolerância.

Enfim, a atualidade globalizada trouxe novos problemas e novos desafios para a ética, para a responsabilidade social e para o exercício profissional, assim como novos instrumentos de dominação e controle da coletividade. Contudo, junto com essas novas dificuldades vieram novas soluções e possibilidades.

Assim, contra a hegemonia do individualismo há a ética do consenso e a disseminação de ONGs e pessoas que fazem trabalhos voluntários coletivos. Contra o domínio do econômico levanta-se as normas e as instituições que protegem o homem e a dignidade humana, relativizando o poder da propriedade privada e protegendo ou democratizando o conhecimento acumulado pela humanidade.

Veja-se o caso da quebra de patente dos medicamentos contra a AIDS promovidos por alguns países. E, por fim, contra o choque de civilizações, culturas e costumes posta-se a ética do plural, da tolerância, assim como a ética global que começa a se formar e pode ser vislumbrada em documentos como a Carta da ONU e demais convenções emitidas pelas Nações Unidas que protegem os Direitos Humanos e os refugiados.

Portanto, após a discussão dos pontos anteriores, pode-se concluir que é possível, em pleno mundo globalizado, conciliar a ética com a responsabilidade social e com o exercício profissional. Contudo, essa tarefa é árdua, pois o próprio sistema capitalista é um sistema anti-ético e individualista que promove a exploração humana e transforma tudo em mercadoria.
Além disso, o discurso ético necessita de efetividade.

Muito se fala e pouco se faz. E a hipocrisia é generalizada, principalmente, nas nações desenvolvidas que pregam os Direitos Humanos, a Democracia e o Estado de Direito, mas promovem a escravidão dos imigrantes ilegais.

7. Bibliografia utilizada

BITTAR, Eduardo C. B. Curso de Ética Jurídica. Editora Saraiva: São Paulo. 2002.

BIHR, Alain. Abaixo a propriedade privada. Le Monde Diplomatique. Novembro de 2006.

COIMBRA, José de Ávila A. Fronteiras da Ética. Editora Senac: São Paulo. 2002.

CRAWFORD, Richard.

HUNTINGTON, Samuel P. O choque de civilizações e a recomposição da ordem mundial. Editora Objetiva: Rio de janeiro. 1997.

SILVA, R. M. A. A inteligência como fator estratégico. Gazeta Mercantil. 16 de janeiro de 2002.

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