quinta-feira, 11 de outubro de 2007

O relato de fatos e a busca da verdade

A idéia deste trabalho está sintetizada em uma propaganda do Jornal Folha de São Paulo. Propaganda que foi considerada a melhor do séc. XX:

Clique no link para ver a propaganda: http://br.youtube.com/watch?v=FLda5jlX59c

Antes de iniciar esta reflexão é preciso ponderar que este trabalho não constitui um estudo científico aprofundado ou uma monografia científica, mas sim uma reflexão breve e interdisciplinar de alguns pontos do tema que envolve o relato de fatos e a busca da verdade ou construção de certezas. Portanto, este trabalho não resultou de uma pesquisa exaustiva ou de leituras extensas, mas sim da junção entre a teoria e os fatos do dia-a-dia. Afinal, o grande desafio da Universidade é permitir ao aluno a transposição do conhecimento de sala de aula (teoria) para a interpretação, compreensão e solução dos problemas do dia-a-dia.

Neste sentido, uma das questões polêmicas e conflitantes das Ciências Humanas, principalmente da História e do Direito, é a questão da veracidade dos relatos de fatos, da relatividade da verdade e a interferência do interesse do observador na descrição e valoração dos acontecimentos, assim como a fixação, interpretação e transmissão destes dados para a posteridade, ou seja, a formação de uma certeza histórica/jurídica/etc é afetada pela visão do narrador e pelo método de construção da suposta verdade que foi utilizado pelo intérprete.

Certamente, esta questão não é mera divagação teórica, mas tem conseqüências práticas muito sérias, principalmente quando o relato é a única fonte de conhecimento acerca de algo. Por exemplo, em algumas celeumas jurídicas as testemunhas são as únicas fontes de informação do juiz que, a partir dos fatos narrados por estas, decidirá o direito e a vida de alguém. Outro exemplo são as disciplinas, como a História por exemplo, que assentam seus fundamentos em conhecimentos obtidos, na maioria das vezes, de narrações de fatos e acontecimentos, sejam escritos ou falados, que sobreviveram à passagem do tempo. Resumindo, o relato e os problemas que advêm de tê-lo como fonte de conhecimento são relevantes para diversas áreas científicas e instituições.

Esta problemática e suas implicâncias podem ser mais bem visualizadas e compreendidas pelos seguintes exemplos explicativos: 1) história contada no filme Rashomon (1950) de Akira Kurosawa, 2) discussão realizada no texto “A retórica do método” do Professor Francisco Murari Pires (1998, p. 9-16), 3) comédia das CPIs (Comissão Parlamentar de Inquérito) na política brasileira e 4) instituição da “VERSÃO OFICIAL” existente nos regimes ditatoriais.

O filme Rashomon (1950) de Akira Kurosawa narra a história de um crime, ou dois crimes, porém os fatos são contados por quatro pessoas que estiveram diretamente envolvidos nos fatos ou que presenciaram os acontecimentos: o suposto bandido, o marido (ou morto), a mulher do morto (viúva, portanto) e uma testemunha que era lenhador.

O acontecimento é a violação de uma mulher perpetrada por um bandido e a conseqüente morte do marido desta. Contudo, não se sabe se a vítima foi estuprada ou se consentiu com o ato. Se o marido foi assassinado ou se suicidou por causa da desonra. E se o suposto bandido realmente cometeu algum crime, pois se a mulher consentiu não houve estupro e se o marido suicidou não houve assassinato. Assim, o fato é reconstituído quatro vezes, de acordo com o ponto de vista e com o interesse de quem o estava narrando.

Neste contexto, o ponto essencial do filme Rashomon, ou seja, o que o diretor Akira Kurosawa tentou mostrar, é a relatividade da verdade e a inútil tentativa do ser humano em construir certezas e verdades a partir de subjetividades e interesses.

Santos (2005), que escreveu um artigo analisando o filme Rashomon, afirma que:

"Naturalmente, é preciso explicar que gênero de justificação permite assumir relato I, relato II, relato III, ou relato IV, como verdadeiro. Como se pode justificar tal coisa, isto é a crença em um desses relatos e não em qualquer um dos outros? Estou em crer que não se pode e, aliás, é essa a conclusão imediata ou intuitiva que vem à idéia. Primeiro, nada nos garante que não haja um relato V, diferente dos quatro relatos conhecidos que seja efetivamente o relato verdadeiro, ou seja, nada nos garante que todos os quatro relatos não sejam falsos (não é diretamente um problema de justificação); segundo, não há forma de garantir, por meio justificado e racional, um relato como verdadeiro em detrimento de qualquer um dos outros, uma vez que são os quatro de igual valor, no que diz respeito ao critério epistêmico usado na tentativa de decidir qual o melhor relato ou qual o mais verossímil deles; por último, e como conseqüência, não é possível saber exatamente o que se passou (como morreu o marido, qual o papel da
mulher em tudo isso e o que terá feito realmente o bandido)."

Este mesmo autor assinala ainda que:

"Acreditar em algo relatado é um simples exercício de confiança (ou fé) no locutor. Claro, podemos estar mais inclinados a acreditar no relato do morto do que no relato do bandido, se tomarmos, por princípio, que os bandidos mentem, mas isso de nada nos assegura, quando, em termos de conteúdo, os quatro relatos são igualmente verossímeis. Aliás, usar isso como justificação seria arbitrário. A única abordagem que resta é uma abordagem céptica (localizada, mas radical!): ‘(não é possível) não há conhecimento (somente) por meio de relato'. (Idem)"

No segundo exemplo, ou seja, no texto “A retórica do Método”, o Professor Murari (1998, p. 9-16) apresenta e analisa as dificuldades enfrentadas pelo historiador Tucídides na reconstrução de fatos da Guerra dos Peloponésios contra os Atenienses.

Relata o Professor Murari que uma das exigências de Tucídides, para ouvir os informantes, era que tivessem presenciado os acontecimentos (condição informativa). Contudo, esta exigência inseriu a parcialidade e o interesse das testemunhas na reconstituição promovida pelo historiador, isto porque as pessoas que estiveram presentes nos acontecimentos haviam optado por um dos lados da guerra, assim, não diziam as mesmas coisas sobre os mesmos fatos, ou seja, “(...) sobre os mesmos fatos, distintos observadores dão informes divergentes.” (Idem).

Além disso, o texto citado conta que Tucídides declara não poder precisar a plena reconstituição do acontecimento narrado, ou porque provido apenas por dados suspeitos ou mesmo porque deles carente.

Outro exemplo claro da subjetividade dos relatos e da relatividade da verdade são as denúncias, as distorções, as manipulações, os Habeas Corpus preventivos (visando proteger os mentirosos) e os absurdos que aparecem nas chamadas CPIs (Comissões Parlamentares de Inquérito) da política brasileira. Nestas Comissões, um mesmo fato é apresentado com dezenas de versões. Versões que são criadas de acordo com o interesse, a conveniência e o índice de picaretagem dos envolvidos. Qual versão é a verdadeira ? Quem está dizendo a verdade ? Quem é mais tendencioso e parcial: as testemunhas ou os intérpretes (os Parlamentares) ? A História dirá a verdade ? Como ?

E, para descontrair, o que Tucídides diria se tivesse diante de uma CPI no Congresso Brasileiro ? Talvez dissesse a mesma coisa que afirmou quando detectou a parcialidade de suas testemunhas que presenciaram a Guerra dos Peloponésios contra os Atenienses, ou seja, nas palavras do Professor Murari (1998, p. 9-16);

"(...) as pessoas que presenciaram os acontecimentos, os presenciaram porque participavam de suas ações. E eram partícipes porque engajados por algum dos lados diversamente envolvidos nas disputas do conflito beligerante. Então, ao ensejo determinante dessa sua participação, viram os fatos (pre)dispostos por suas inclinações pessoais e, assim, consoante à ótica contaminada de seu engajamento. De modo que sua percepção dos fatos, e seu condizente relato, comprometem-se por essa parcialidade de seu olhar, não apenas e tanto porque se tratem de subjetividades diversas, mas, sobretudo, porque, devido a engajamentos antagônicos, respeitam a enfoques inerentemente conflitantes de constatação informativa dos acontecimentos presenciados."

Outro ponto importante neste tema é a possibilidade de manipulação política das informações e dos fatos em alguns regimes políticos, ou seja, em alguns países publica-se e divulga-se apenas aquilo que possui o carimbo: “VERSÃO OFICIAL”. A versão do Estado, o relato estatal dos acontecimentos, impera como verdade absoluta, incontestável e inquestionável, silenciando as vozes de todas as demais fontes de informação. Isto ocorre principalmente nos regimes de exceção (ditaduras), onde predomina a razão de Estado e restrições às liberdades de expressão e informação. São exemplos disso: a China, a Coréia do Norte, Cuba, Irã, etc.

Nestes regimes a verdade pertence ao Estado que atua fortemente, inclusive prendendo e eliminando pessoas, para controlar a circulação da informação e do conhecimento, fazendo prevalecer a versão ou o silêncio oficial sobre os acontecimentos. Assim, o Estado se transforma em um narrador de fatos e acontecimentos. Certamente, as versões estatais carregam consigo o interesse e a parcialidade dos governantes e a chamada “razão de Estado” deve ser lida como “razão do governante do Estado”.

Contudo, de acordo com Sant’anna (1989. p. 196-8) ninguém tem poder suficiente para calar a História, pois:

"História é o anti-silêncio. É o ruído emergente das lutas, angústias, sonhos, frustrações. Para o pesquisador, o silêncio da história oficial é um silêncio ensurdecedor. Quando penetra nos arquivos da consciência nacional, os dados e os feitos berram, clamam, gritam, sangram pelas prateleiras. Engana-se, portanto, quem julga que os arquivos são lugares apenas de poeira e mofo. Ali está pulsando algo. Como num vulcão aparentemente adormecido, ali algo quer emergir. E emerge. Cedo ou tarde. Não se destrói totalmente qualquer documentação. Sempre vai sobrar um herege que não foi queimado, um judeu que escapou ao campo de concentração, um dissidente que sobreviveu aos trabalhos forçados na Sibéria. De nada adiantou aquele imperador chinês ter queimado todos os livros e ter decretado que a história começasse com ele. A história começa com cada um de nós, apesar dos reis e das inquisições."

É importante assinalar também que métodos de controle da informação e das notícias também existem em regimes democráticos. Certamente, são mais dissimulados e camuflados, atuando mais pelo poder econômico do que pela violência da razão de Estado. Assim, em uma democracia, o governo consegue cooptar a mídia, estabelecendo um discurso favorável aos seus interesses, por meio da distribuição de verbas publicitárias por exemplo, ou seja, as milionárias campanhas publicitárias do Estado são realizadas nas mídias que apóiam e defendem o governo e seus aliados.

Enfim, tanto Tucídides quanto Akira Kurosawa enfrentaram o mesmo problema: como formar uma certeza histórica/jurídica a partir de fragmentos de verdades apresentadas em descrições de fatos e acontecimentos afetados pelo interesse e pela subjetividade do narrador ? Mas, além disso, outra questão que aflorou foi: como afastar da fixação e interpretação dos fatos a subjetividade e o interesse do intérprete ou do transmissor da informação ?

Estas questões, conforme se vislumbra nos exemplos citados, são de extrema importância, principalmente na época atual que é marcada e determinada pelo conhecimento, seja politicamente, socialmente ou economicamente, e pelas redes de telecomunicação e informação. Fatos e boatos (relatos de acontecimentos verídicos ou não) são construídos, distorcidos, manipulados e disseminados em questões de segundos para todo o planeta, podendo salvar ou destruir, trazer a paz ou levar a guerra. Em outras palavras, na atualidade o conhecimento e a informação transformaram-se em elementos do poder e de poder.

Conseqüentemente surge a questão inevitável: como resolver os problemas apresentados ? Como descobrir a verdade no meio de tantas mentiras ?

Talvez a saída esteja no método utilizado por Akira Kurosawa, no filme Rashomon, e por Tucídides, na reconstituição da Guerra dos Peloponésios, ou seja, o caminho é confrontar as versões, realizar um contraditório entre os relatos, buscando alcançar uma síntese. Isso vale tanto para o historiador, quanto para o juiz ou para o cidadão comum diante das enxurrada de informações do dia-a-dia.

Inclusive o método do contraditório é um procedimento obrigatório dos processos judiciais, ou seja, é utilizado amplamente no Direito e visa determinar (com a maior aproximação possível) a verdade dos fatos. É importante lembrar que a área jurídica é especializada na solução de conflitos entre relatos e versões diferentes de um mesmo fato e cabe ao juiz, a partir das provas apresentadas no processo por cada uma das partes, dizer quem tem e quem não tem razão, ou seja, qual é o relato verdadeiro. Certamente, o método do contraditório utilizado pelo juiz não é infalível e, por isto, existem os recursos e as instâncias de revisão das sentenças judiciais.

Enfim, na atualidade é imprescindível conhecer quem conta e, principalmente, por que está contando, ou seja, qual é o interesse do narrador na publicação dos fatos. Isso permite a delimitação da subjetividade do narrador na descrição dos fatos, possibilitando descartar as referências que constituem seu interesse e que foram manipulados a seu favor. Contudo, fazer isto não é trivial e nem fácil, pois exige um conhecimento minucioso de cada um dos envolvidos.

Contudo, é primordial a confrontação dos relatos, ou seja, o estabelecimento de um contraditório entre as versões e as fontes apresentadas. Por exemplo, o cidadão comum pode fazer isto lendo mais de um jornal, vendo mais de um noticiário, buscando mais de uma fonte de informação, pois do confronto entre as várias versões de notícias e informação é possível estabelecer uma síntese que tem grandes chances de ser verdadeira. Certamente, não se descarta a probabilidade da síntese ser falsa, pois existe a possibilidade de todos os relatos serem falsos.

Além disso, os cidadãos devem desconfiar os relatos que vêm carimbados com título “VERSÃO OFICIAL”, pois esta versão constitui o relato dos fatos a partir da perspectiva do governante do Estado. Logo, não possui nada de excepcional ou extraordinário e nem pode ser aceita como verdade absoluta e inquestionável. Toda versão traz embutida sua parcialidade e seu interesse, inclusive o relato estatal. Assim, também deve ser confrontada com outras versões e descartada se for mentirosa.

Portanto, a questão dos relatos e a busca da verdade, tentativa de construção de certezas a partir de subjetividade e interesses, constituem uma problemática histórica antiga que foi, inclusive, enfrentada por Tucídides na descrição da Guerra dos Peloponésios contra os Atenienses, mas que continua aparecendo e se disseminando na atualidade, principalmente na política. Contudo, a ferramenta do contraditório, confrontação das versões e dos relatos, permite a formação de uma síntese e a aproximação da verdade, ou seja, possibilita o afastamento de subjetividades e incertezas e a determinação aproximada da verdade dos fatos. Isto pode ser aplicado tanto nas áreas científicas, quanto nas instituições e no dia-a-dia dos cidadãos.

BIBLIOGRAFIA UTILIZADA

PIRES, Francisco Murari. A Retórica do método: (Tucídides I.22 e II.35). Internet: http://www.fflch.usp.br/dh/heros/mithistoria/ensaios/retoricametodo.html . Acesso em: junho/2006. Revista de História. n. 138. 1998. p. 9-16.

SANTOS, Diogo. Relatos e Conhecimento: Rashomon (1950), de Akira Kurosawa. Internet:< http://cinefilosofia.com.sapo.pt/artigos/conteudo/Rashomon.htm >. Acesso em: junho/2006.

SANT’ANNA, Affonso, R. de. A raiz quadrada do absurdo. Internet: < http://xoomer.alice.it/direitousp/historia.htm >. Acesso em: junho/2006. Rio de Janeiro, Rocco, 1989. p. 196-8.

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