sábado, 3 de junho de 2006

Terceiro setor: O crescimento da “pilantropia” entre as ONGs


A explosão do terceiro setor criou outro tipo de ONG: a dos aproveitadores que, na falta de fiscalização, desviam recursos públicos e enriquecem.

Quando o sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, criou a Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida, no Rio de Janeiro, em 1993, ajudou a cristalizar a imagem que até hoje persiste das organizações não-governamentais, as ONGs. No imaginário popular, elas representam uma trincheira da sociedade civil contra os abusos de governos ou grandes empresas. Seriam todas campeãs de causas nobres e estariam repletas de ativistas dedicados e altruístas. Era o caso de Betinho. É o caso de Viviane Senna, com seu Instituto Ayrton Senna. É o caso de milhares de organizações que - equivocadas ou não - lutam pelo que acreditam. Mas não é o caso de todas as ONGs.Longe disso.

Nos anos 90, em decorrência da insuficiência dos Estados em suprir as necessidades da população, proliferou o que hoje se chama terceiro setor, formado por entidades privadas dedicadas ao bem público: ONGs, instituições religiosas, entidades beneficentes etc. Nessa onda, o número de ONGs cresceu tanto que o acadêmico americano David Korten, ex-professor de Harvard e referência mundial nessa área, criou uma classificação para elas. As ONGs da primeira geração, segundo ele, operam com urgências, distribuem serviços, alimentos e remédios. Dão o peixe. As ONGs da segunda geração se empenham em fazer com que as comunidades pobres encontrem a solução para os próprios problemas. Ensinam a pescar. As da terceira geração transitam no campo das idéias, da formação moral, da cidadania. Elas se propõem a ser motores de mudanças políticas e sociais.

Korten não previu uma quarta - e indesejável - geração de ONGs: as "pilantrópicas". São ONGs suspeitas de ser usadas como laranjas para burlar leis de licitações, desviar recursos, fazer caixa dois de campanhas eleitorais e propiciar enriquecimento ilícito. São também aquelas dedicadas a aproveitar reivindicações de minorias para achacar empresas. No Rio de Janeiro, 12 ONGs são investigadas pelo Ministério Público por convênios milionários com o governo fluminense. Uma delas, o Centro Brasileiro de Defesa dos Direitos da Cidadania (CBDDC), que funciona em uma pequena sala de uma cidade do interior do Estado do Rio, recebeu no ano passado um repasse de R$ 105 milhões em recursos públicos.

Reportagens publicadas pelo jornal O Globo revelaram que algumas dessas instituições são ligadas a empresários que fizeram doações à pré-campanha à Presidência da República de Anthony Garotinho, marido da governadora Rosinha Garotinho (PMDB). A ONG recebia dinheiro do governo Rosinha e ajudava Garotinho. Recentemente, apareceram indícios de que ONGs de fachada foram usadas pela quadrilha de sanguessugas que desviava recursos do Orçamento com a venda superfaturada de ambulâncias. As entidades eram usadas para driblar restrições da Lei de Responsabilidade Fiscal à transferência de dinheiro do governo federal para prefeituras inadimplentes.

O Estado fiscaliza a intenção das ONGs, e não se elas trabalham mesmo pelo interesse público.

Por que esse desvirtuamento da sigla ONG? Uma das razões é que houve uma vertiginosa proliferação das ONGs. Em 2002, ano da última contagem oficial, havia 276 mil ONGs no Brasil. É uma para cada 600 habitantes. De lá para cá, surgiram em média mais oito ONGs por dia, numa estimativa baseada apenas nas que entraram com pedidos de parcerias com governos ou de benefícios tributários. Não entraram na conta os milhares de ONGs que não se registraram nos órgãos federais.

Essa multiplicação das ONGs não se deve a uma repentina febre de idealismo. Nos últimos anos, criaram-se condições que estimularam o crescimento do terceiro setor. No Estado do Rio, por exemplo, difundiu-se a prática de contratação de funcionários pelo governo estadual por intermédio de ONGs, para burlar a exigência de concurso público. "É uma intermediação ilegal", diz João Batista Berthier, do Ministério Público do Trabalho do Rio. "Mas se tornou tão disseminada e caótica que não temos estimativas sobre o número de funcionários terceirizados via ONGs."

A esse crescimento não correspondeu o necessário aumento da fiscalização. "Só o Estado tem poderes de investigar. O cidadão comum, não", diz a advogada Elisa Larroudé, autora de uma tese de mestrado pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) de São Paulo sobre ONGs. A fiscalização do governo federal se limita à verificação do cumprimento de formalidades. "Atestamos a intenção de trabalhar pelo interesse público, e não se a organização realmente trabalha", diz José Eduardo Elias Romão, diretor de Justiça e Classificação do Ministério da Justiça. "É uma loucura. Esse modelo não combina com o estado democrático de direito."

Um exemplo da frouxidão da fiscalização oficial: em três anos, dos 110 títulos de Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscip), um tipo de ONG que faz parceria com governos, cancelados pelo Ministério da Justiça, só dois o foram por conta de irregularidades. No Ministério do Desenvolvimento Social, em 2005, houve apenas três casos de cassação de títulos entre as mais de 16 mil entidades beneficentes. E, em 2004, nenhum. "Cancelamentos só em cima de denúncias, que são raras", diz Márcia Pinheiro, ex-presidente do Conselho Nacional de Assistência Social.

Outro problema é que a maioria das ONGs ainda funciona como caixas-pretas. As entidades que recebem recursos públicos são obrigadas a fazer prestações de contas, mas essa exigência é cumprida por meio de publicações de balanços no Diário Oficial em letra miúda e linguagem geralmente indecifrável. Apesar de o governo deixar de arrecadar R$ 580 milhões por ano só com a isenção de impostos de entidades beneficentes de assistência social, as ONGs que funcionam com doações de recursos privados não precisam fazer prestações de contas.

Sob o mesmo guarda-chuva de ONGs, há um cipoal de Oscips, fundações e associações sem fins lucrativos que torna também difícil distinguir as entidades sérias das "pilantrópicas". Para ajudar nessa diferenciação, alguns avanços começam a ser ensaiados. O Ministério Público do Rio de Janeiro criou um grupo especial de fiscalização de entidades do terceiro setor. Embora incipiente, o trabalho do grupo já reuniu informações sobre 11 ONGs suspeitas, supostamente engajadas em projetos para a infância, que receberam R$ 250 milhões em verbas públicas. O Tribunal de Contas da União (TCU) começou, na semana passada, a fazer reuniões em cada Estado para esclarecer dirigentes de ONGs sobre formas de prestar contas.

A iniciativa mais promissora pretende ser a criação, até outubro, do "Siafi do Terceiro Setor" pelo Ministério da Justiça. A exemplo do Siafi, o sistema de acompanhamento dos gastos do governo federal, será um supercadastro com dados da Receita Federal, da Controladoria-Geral da União e do Tribunal de Contas sobre as ONGs agraciadas com recursos públicos. Estará acessível a qualquer um na internet. "Queremos saber como as ONGs gastam o dinheiro público e abrir a informação para a sociedade. "Para todas as ONGs colocarem as prestações de conta na internet, só falta vontade política", diz Eduardo Szazi, advogado especializado em terceiro setor. Esse é um caminho já percorrido pelas ONGs sérias. Para se diferenciar, elas procuram tornar suas atividades mais transparentes. "As ONGs têm um papel importante em todo lugar onde estão, tanto em países ricos como pobres", diz Douglas Rutzen, presidente do International Center for Not-for-Profit Law, uma ONG especializada em estudos sobre legislação para ONGs. "O importante é estar claro para quem elas devem prestar contas e por quais ações".

Sem controle
Proliferação

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