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Visto freqüentemente como universal, o tipo de saber científico nascido no Ocidente é apenas um dos modos de produzir e enunciar conhecimentos. E pode estar em xeque, devido ao imediatismo do capital financeirizado
“Sendo a ciência um dos verdadeiros elementos da Humanidade, é independente de qualquer forma social e é eterna como a natureza humana”, escreveu, em 1848 Ernest Renan, em L’Avenir de la science [1]. Se o cientificismo do século 19 perdeu muito espaço, ao fim do século 20, todas as idéias dele recebidas só podem ter desaparecido.
A universalidade da ciência continua hoje uma convicção amplamente partilhada. Em um mundo em que sistemas sociais, valores espirituais, formas estéticas vivem incessantes abalos, seria tranqüilizador que a ciência oferecesse pelo menos um ponto fixo de referência dentro do relativismo ambiente. Talvez o único elemento “verdadeiro”, para retomar a expressão de Renan. Um século depois dele, o físico Fréderic Joliot-Curie escreveu com toda a boa-fé progressista: “O conhecimento científico puro deve trazer a paz aos nossos espíritos, expulsando as superstições, os terrores invisíveis, dando-nos também uma consciência mais clara de nossa situação no universo. E é talvez um de seus mais elevados méritos: é o elemento fundamental – talvez o único – de unidade de pensamento entre os homens dispersos sobre o globo terrestre [2]”.
É difícil contestar o fato de que todos os outros elementos da cultura – formas de organização política, estruturas de parentesco, mitos fundamentais, usos e costumes, religiões e espiritualidade, artes e letras – pertençam a culturas, no sentido etnológico do termo. Mas a ciência não oferece conhecimentos objetivos, verificáveis, objetivos? Se o teorema de Pitágoras, o princípio de Arquimedes, as leis de Kepler [3], ou a teoria de Einstein são verdadeiros aqui e agora, ali e ontem, não o são por essência, em toda parte e sempre? No entanto, surge aqui uma primeira dúvida. Por mais concludentes que possam parecer, todos estes exemplos pertencem a uma tradição bem provinciana: a da Europa Ocidental e da cultura greco-judaico-cristã. Teríamos muita dificuldade em citar, em apoio à afirmação de universalidade, um punhado de exemplos também universais, que chamaria saberes comumente partilhados e referenciados em origens tibetanas, maoris ou astecas.
Outas ciências: «precursoras» da européia?
O século XIX considerava a ciência ocidental como a única existente, o que a destinava naturalmente à universalidade. Desde então, os historiadores da ciência têm mostrado a importância e a riqueza de outras tradições científicas – indianas, chinesa, árabe-islâmica. Mas este reconhecimento é muitas vezes percebido como se se tratasse de «fontes» que alimentaram a grande corrente única da ciência. Fontes que se admitirá terem sido por longo tempo negligenciadas, mas para melhor subestimar-lhes afinal a historicidade específica [4]. Já a unidade da ciência, tão ardentemente projetada até o início do século 20, apaga-se diante da especialização crescente dos campos da ciência, tanto em relação aos modos de organização quanto a seus métodos de investigação.
Sem julgar a cientificidade das outras ciências, fiquemos só com as matemáticas e as ciências naturais. Levar em conta as ciências sociais e humanas tornaria de fato muito mais fácil a crítica da pretensão à universalidade.
Em uma visita ao Japão, em um dos vários templos xintoístas ou budistas, podem-se ver muitas tabuletas suspensas em oferenda às divindades do lugar, gravadas ou pintadas com diversos motivos: paisagens marinhas, vistas do Fujyama, cavalos no galope ou caligrafias puras. Entre esses ex-votos, figuras geométricas complexas, arranjos particulares e enigmáticos de círculos, triângulos e elipses. O texto que acompanha a figura é um enunciado matemático, dado na maior parte das vezes sem demonstração. Estes sangaku, ou tabuletas matemáticas, remontam ao período Edo (séculos XVII – XIX), quando o Japão, voluntariamente, isolou-se e cortou as influências externas — ocidentais em particular. Voltado para si mesmo, desenvolveu algmas de suas criações culturais mais originais, o teatro nô, a poesia dos haikai e uma matemática específica, o wasan, dos quais os sangaku constituem uma forma pública.
Tendo por tema as propriedades métricas ou projetivas de figuras planas e tridimensionais, mas também certas considerações sobre os números inteiros, o wasan não se apresenta como um corpo doutrinário axiomático, do tipo adotado pela matemática ocidental desde Euclides. É antes uma coletânea de resultados – alguns dos quais muito elaborados. Encontramos, em alguns sangaku, enunciados que precedem algumas vezes de um a dois séculos os teoremas ocidentais equivalentes [5].
Uma matemática em busca do Belo
Mais que os conteúdos matemáticos dos sangaku, é sua apresentação e sua função que nos intriga. Imaginamos encontrar em Lurdes, ou no Sacré-Coeur, um ex-voto representando a reta de Euler ou o triângulo de Pascal? Verdadeiras obras de arte, caprichosamente pintadas e escritas muitas vezes por amadores esclarecidos, essas tabuletas testemunham uma concepção antes de tudo estética das matemáticas: o que se oferece às divindades é o Belo, quer tome a forma de cavalo pintado admiravelmente ou de um elegante resultado geométrico.
Certamente, a função dos sangaku não era puramente estética. Eles desempenhavam também um papel na constituição e rivalidade das escolas de matemática. Revestiam-se até de um aspecto esportivo, exprimindo, sob forma de desafios, a emulação entre mestres de matemática ou amadores esclarecidos [6]. Contrariamente às matemáticas ocidentais, os sangaku não podem ser plenamente compreendidos nem da perspectiva de aplicações técnicas, nem da perspectiva de uma concepção filosófica, nem mesmo (apesar de seu contexto sagrado), da perspectiva de aplicações místicas, como a numerologia da cabala, por exemplo.
Quem questina a noção de universalidade da ciência, não deveria reabilitar, ainda que de modo implícito ou inconsciente, a idéia de uma superioridade substancial da civilização ocidental, que por si só a teria conduzido a desenvolver esta forma de conhecimento. Deve-se começar por estabelecer que todas as culturas humanas dispõem dos instrumentos intelectuais necessários para a emergência de saberes científicos. Mesmo muito antes das sociedades mercantis ou industriais, não existe grupo humano cujas atividades não exijam aptidões que poderiam ser chamadas de «protocientíficas».
A exploração da natureza, tanto pelos caçadores-coletores como por pastores e agricultores, demanda uma classificação adequada das espécies animais e vegetais e saberes detalhados quanto a seus comportamentos e propriedades – uma protobotânica, uma proto-zoologia. Seja para fins de orientação ou de adivinhação (ou os dois), deve desenvolver-se um conhecimento do céu, dos objetos que o povoam e de seus movimentos – uma proto-astronomia. A quantificação dos rebanhos, a administração das colheitas, exigem capacidades elaboradas de enumeração e e de cálculo – uma proto-aritmética. As estruturas de parentesco obedecem a regras às vezes extremamente complexas – uma proto-álgebra. A decoração do habitat e as vestimentas ornamentais levam à prática de traçados gráficos muitas vezes sutis – uma proto-geometria. Sem falar nos jogos e divertimentos que não fazem notar as competências elaboradas de raciocínio – uma proto-lógica. As técnicas de manufatura da madeira, do metal, da cerâmica baseiam-se num conhecimento preciso dos materiais – uma proto-física.
Muitos sistemas numéricos
Esta universalidade de fundo concretiza-se em formas de uma surpreendente variabilidade. Contentemo-nos em ilustrá-la para os sistemas de numeração [7]. A base 10, que serve para os sistemas modernos, corresponde provavelmente à decadactilia (os dez dedos da mão) humana, mas nem por isso é geral. Os Yuki, uma etnia ameríndia da Califórnia, utilizam um sistema de base 8 (antecipando nossos octetos informáticos), porque não contam os dedos, mas entre eles. Já os babilônios recorriam às bases 12 e 60. A terminologia aditiva dos números à qual estamos habituados (vinte e cinco = vinte mais cinco) não é inevitável: em chol, uma língua maia de Chiapas, a contagem se faz por vintenas, mas em relação à unidade superior: assim, 25 sera enunciado como «cinco rumo a duas vezes vinte» (que se pode explicitar em: «5 a partir de 20 indo para 40»).
Indo mais a fundo, encontramos em muitas línguas classificadores numerais. São recursos lingüísticos que acrescentam informação sobre a qualidade dos objetos que a cada número se refere. A palavra que designa um número é flexionada (graças a um jogo de prefixos ou sufixos, por exemplo) segundo a classe à qual se refere. Em maori, há duas classes, para seres humanos ou não. Mas certas línguas têm várias dezenas de classificadores numerais: a língua dioi (China do Sul) não possui menos de 55, dos quais aqui estão algumas classes correspondentes: a) dívidas, crédito, contabilidade; b) montanha, paredes, territórios; c) cachimbos de ópio, apitos, etc; d) arrozais; e) roupas, cobertores; f) poções, medicamentos; f) espíritos, homens, trabalhadores, ladrões, h) moças, mulheres; i) estradas, rios, cordas; j)crianças, moedinhas, pedrinhas; k) pares de coisas, etc. É uma lista bem superior à lembrada por Borges e retomada por Foucault.
A etnologia paternalista do século 20 via em tais sistemas uma etapa arcaica de um «pensamento primitivo», que não teria ainda acesso à abstração total do número, separando-o do que enumera. Mas pode-se argumentar legitimamente que essas classificações correspondem a distinções de uma extrema pertinência para as práticas específicas desta sociedade.
O próprio termo «ciência» encerra uma polissemia que traz profundas confusões, testemunhadas pela onda de definições propostas pelos dicionários comuns. Ao examinar de perto a astronomia dos sacerdotes babilônios (ligada sobretudo a preocupações divinatórias) ou a geometria grega (de essência mais filosófica do que prática), vê-se bem que a mesma palavra «ciência» pode designar práticas bem diferentes, tanto pelas formas de organização da produção de novos conhecimentos quanto pelas funções sociais desses conhecimentos. Por isso optamos por chamar de «proto-ciências» os saberes eficazes e «objetiváveis [8]», mas não autônomos, intrinsecamente ligados a uma atividade técnica, econômica, mítica ou lúdica. Reservaremos o termo «ciência» a formas de saber abstratas, desligadas, pelo menos em grande parte, de sua origem prática e de sua utilização concreta.
As contribuições da Grécia e do Islã
Nesse sentido, a matemática grega é um bom exemplo canônico de ciência. A civilização egípcia possui métodos que permitem, a partir de medidas de agrimensura, calcular as áreas de terrenos de diversas formas. Mas esses métodos empíricos, com fins diretamente utilitários, são às vezes exatos, às vezes aproximados, às vezes completamente errôneos: em todo c aso, nunca demonstrados. Os gregos, ao contrário, elaboram um corpo doutrinário que transcende qualquer aplicação prática e se baseia na noção essencial de prova, culminando com os Elementos de Euclides. É esta matemática que reconhecemos até hoje como ciência arquetípica.
Nem por isso, o «milagre grego» constitui uma ruptura inaugural irreversível, que faria a cultura ocidental entrar definitivamente na era da ciência. Basta considerar o pouco interesse dos romanos por esse saber abstrato e a fraqueza de suas contribuições — enquanto recorrem tanto aos gregos, no plano da literatura e da filosofia.
É a civilização árabe-islâmica que restituirá à cultura uma dimensão científica maior. Longe de se limitar (como muito se disse) a transmitir a ciência antiga grega ou indiana, ela dá, a partir do século 8, um prodigioso impulso a numerosas disciplinas científicas [9]. Matemáticas, óptica, astronomia, geografia, medicina, os conhecimentos novos se escreverão, de Samarcanda a Zaragoza, em árabe. Matemáticos como al-Khwarizmi (século 9) ou Omar al-Khayyam (o grande poeta do século 11), físicos como Ibn-al-Haytham (séculos 10-11) avançarão tanto em álgebra quanto em óptica, vários séculos à frente de seus sucessores europeus. Mas, por mais inovadora que seja, essa ciência árabe-islâmica opera em condições ideológicas e políticas bem diferentes do que será a ciência européia.
As mesmas observações valeriam para as ciências chinesas. Seu desenvolvimento, autônomo até a chegada maciça dos europeus (e dos jesuítas em particular), no século 17, mostra profundas especificidades, tanto por suas temáticas de pesquisa quanto por suas formas de organização [10].
Com Galileu, o abstrato reencontra o real
A ciência moderna nasce no início do século 17 na Europa (a «ruptura de Galileu») e se caracteriza por traços originais, estreitamente ligados aos da sociedade européia. Por uma lado, a emancipação e aumento de poder das camadas urbanas de artesãos conferem ao trabalho manual e às atividades práticas uma legitimidade e uma dignidade novas. Daí, como testemunha o famoso texto de Galileu sobre o arsenal de Veneza [11], a nova ancoragem da ciência na técnica, para nela buscar tanto temas de pesquisa (os princípios de funcionamento das máquinas simples) quanto meios de investigação revolucionários. A experimentação ativa toma o lugar da simples observação passiva. Ao mesmo tempo, o contexto ideológico e religioso fornece eficazes representações metafóricas do saber. A idéia da natureza como um «Grande Livro» (Galileu de novo) e a noção associada, a priori tão estranha, de «leis da Natureza» encontram suas fontes na organização política e religiosa da sociedade. Mais ainda: o programa manifesto de colocação em prática do saber teórico em grande escala (Francis Bacon: «Conhecimento é poder» e René Descartes: «Tornar-se senhores e donos da natureza») articula-se explicitamente com a mecanização e depois a industrialização do capitalismo nascente.
Estes diversos episódios do desenvolvimento científico não podem ser tratados como fases sucessivas de um progresso contínuo e homogêneo. Os episódios de cultura científica, variados e intensos quanto possam ser, acabam tornando-se regra geral antes de serem substituídos. As rupturas e defasagens são mais marcadas do que as passagens – e muitas vezes não menos fecundas. Em seu monumental empreendimento de ressurreição das ciências chinesas, um Joseph Needham (1900 – 1990) pôde ser guiado pela preocupação de pôr em evidência seu caráter precursor e sua contribuição à ciência ocidental. Mas esse ponto de vista, por mais bem intencionado que seja, revela-se hoje redutor demais. As práticas científicas chinesas têm características próprias, tanto epistemológicas quanto sociológicas, que não permitem considerá-las como simples afluente do grande rio da ciência. Ocorre o mesmo com as ciências árabe-islâmicas. O reconhecimento das dívidas consideráveis da ciência ocidental em relação à chinesa e à árabe-islâmica não autoriza de forma alguma a negar sua especificidade e a valorizá-las apenas por essas contribuições.
Para cada formação social, um modo de conhecer
Há ciências, não apenas no sentido elementar em que existem disciplinas científicas diversas, mas sobretudo no sentido em que os modos de produção, de enunciação e aplicação dos conhecimentos diferem radicalmente em função dos lugares e épocas. Poderíamos, aliás, argumentar que uma das melhores provas da pluralidade irredutível destes diferentes episódios é sua finitude temporal. Tanto a ciência greco-alexandrina quanto a ciência chinesa e a árabe-islâmica declinaram, por razões específicas bastante internas às sociedades nas quais se desenvolviam. Acontece com os monumentos intelectuais do conhecimento científico, assim como com os monumentos materiais de nossas cidades. Muitas vezes, sua ruína e abandono permitem que sejam pilhados sem respeito, e seus materiais reempregados em estruturas e finalidades às vezes muito diferentes de sua destinação inicial.
Para dissipar de vez a concepção comum, de uma ciência universal que transcenderia as formas concretas nas quais se encarna ao sabor das vicissitudes históricas, basta constatar a existência de civilizações sem práticas científicas próprias, mas nem por isso menos desenvolvidas. Qualquer um pode citar sem dificuldade um bom número de sábios gregos, entre a Jônia e a Alexandria: de Pitágoras a Hipácias, de Tales a Euclides, de Arquimedes a Heron, de Hiparco a Ptolomeu e tantos outros. Mas que nomes nos vêm à mente se invocamos cientistas romanos de renome? Um naturalista compilador e crédulo, Plínio, o Ancião (e seu sobrinho); um arquiteto, Vitrúvio; um agrônomo, Columelo; e quem mais? Os romanos, que tomaram tanto dos gregos conquistados em filosofia, em poesia, em mitologia, em escultura, em arquitetura, não assumem de modo algum sua herança científica. Isto não impediu a dominação, longa e próspera, que exerceram sobre a Europa Ocidental e o Mediterrâneo.
Uma das questões científicas atuais mais apaixonantes é a da existência de formas de vida extra-terrestres, e mais além, de formas «inteligentes». Algumas sondas espaciais destinadas a sair do sistema solar já levam mensagens com destino a possíveis co-habitanes extra-terrestres do espaço. Por mais abstrato que seja o código, supõe em seu recipiente modos de conhecimento comensuráveis com os nossos – portanto, uma forma máxima de universalidade da ciência, no sentido próprio da palavra (já que relacionado ao Universo inteiro). Mas imaginemos uma espécie viva e pensante completamente estranha à nossa. Por exemplo: numa bioquímica vizinha à nossa, um gênero de invertebrados vivendo nas grandes profundezas oceânicas do planeta que o abriga. Pode-se conceber que a evolução conduza tais seres a desenvolver capacidades de comunicação, uma organização coletiva e um conhecimento ativo de seu meio: uma civilização, de certo modo. Afinal, os cefalópodes terrestres não têm a reputação de ter uma inteligência animal bastante sutil?
Os sentidos mobilizados por tais seres seriam hierarquizados de um modo bem diferente do que o que conhecemos: na obscuridade abissal, a visão será secundária; o tato, evoluído em sensações quimio-tácteis sutis e diversificadas, seria principal. Seriam afetados tanto os dispositivos de comunicação quanto as percepções do mundo. O desenvolvimento dos saberes de tais seres ocorreria evidentemente em uma ordem completamente diferente da nossa. Nesse universo fluido e repleto, uma matemática do contínuo deve preceder a aritmética do discreto; a química viria bem antes da física; a mecânica dos fluidos estaria à frente da mecânica dos sólidos, etc. O desenvolvimento de uma astronomia seria dos mais tardios e exigiria meios de investigação altamente técnicos.
Fim do casamento entre especulação e ação?
Mas, sobretudo, a linguagem utilizada (seja qual for o suporte físico, provavelmente não sonoro) forneceria aos saberes «científicos» representações metafóricas, associações mentais, estruturas epistêmicas muitíssimo diferentes das nossas. A efetividade dos intercâmbios com tal civilização (mesmo supondo que fossem materialmente possíveis) traria temíveis problemas de tradução, ao lado dos quais os que tivemos de afrontar na Terra entre culturas diferentes seriam desprezíveis. Nada garante a possibilidade de tal intercompreensão.
Voltando ao nosso planeta, é preciso convir que a ciência está universalizada. Os físicos trabalham sobre os mesmos temas e com os mesmos aceleradores em Genebra e em Chicago. Os biólogos fazem os mesmos experimentos em Tóquio e em Paris. Os astrônomos utilizam os mesmos telescópios no Chile e no Havaí. Mas esta globalização não é outra coisa que a vitória de um certo tipo de ciência «ocidental» — inicialmente européia, depois vinda dos Estados Unidos.
Esta dominação espacial não implica nenhum privilégio temporal. Assim como as ciências grega, chinesa, árabe, é possível que a ciência ocidental (ou mundial, são agora a mesma coisa) seja mortal. Talvez, ao fim de quatro séculos de desenvolvimento, já esteja moribunda. Sua eficácia, que lhe permitiu realizar, a partir do século 19, o programa baconiano e cartesiano, volta-se agora contra ela. O comando social – ou, mais precisamente, mercantil —, coloca o desenvolvimento científico sob o império de restrições de produtividade e rentabilidade a curto prazo. A possibilidade de pesquisas especulativas fundamentais sem garantia de sucesso imediato torna-se cada vez mais ilusória. Assim se desfaz, de modo insidioso, a conjunção, afinal bastante surpreendente, e historicamente muito particular, entre a especulação e a ação, que caracterizou a ciência ocidental durante dois séculos. O regime da tecnociência, no qual ingressamos, concretiza, por muito tempo, um novo prejuízo para esta atividade decididamente «pluriversal» que é «a» ciência.
Mas se outros lugares e outros tempos puderam dar aos conhecimentos que consideramos científicos funções intelectuais e materiais tão diferentes das de hoje, como não deixar aberta a questão do seu estatuto na(s) civilização (ões) do futuro?
Tradução: Elisabeth Almeida -betty_blues_@hotmail.com
[2] Fréderic Joliot-Curie, discurso de 12/11/1945, três meses depois dos bombardeios nucleares em Hiroshima e Nagasaki.
[3] Em 1609, Johannes Kepler constatou que os planetas têm órbitas elípticas.
[4] Ver Amy Dahan, “La tension nécessaire: les savoirs scientifiques entre universalité et localité”, Alliage n° 45-46 (“Dialogue n° 2”), Nice, inverno de 2000.
[5] T. Rothman & H. Fukagawa, “ Géométrie et Religion au Japon ”, Pour la science, n° 249, Paris, julho de 1998; H. Fukagawa and D. Pedoe, Japanese Temple Geometry, Charles Babbage Research Foundation, Winnipeg, 1989.
[6] Ver Annick Horiuchi, “Les mathématiques peuvent-elles n’être que pur divertissement? Une analyse des tablettes votives de mathématiques à l’époque d’Edo”, Extrême-Orient, Extrême-Occident, vol. 20, Presses Universitaires de Vincennes, 1998.
[7] Os exemplos que se seguem são tirados da obra de Marcia Ascher, Mathématiques d’ailleurs (nombres, formes et jeux dans les sociétés traditionnelles), Seuil, 1998. Nestra obra encontram-se muitos outros exemplos relacionados com atividades do tipo geomérico ou lógicas. O posfácio de Karine Chemla e Serge Pahault, “Écritures et relectures mathématiques”, traz uma preciosa explicação teórica sobre a própria idéia de matemática e sobre sua problemática universalidade.
[8] Que podem ser relacionados a uma realidade externa.
[9] Encontraremos uma introdução sintética à ciência árabe-islâmica na obra de Ahmed Djebbar (com Jean Rosmorduc), Histoire de la science arabe, Seuil (Points-Sciences), 2000. Para um panorama detalhado, ver Roshdi Rashed (organizador), Histoire des sciences arabes (3 tomos), Seuil, Paris, 1997.
[10] A referência nodal, no que diz respeito à ciência chinesa, continua a ser a obra de Joseph Needham, Science and Civilization in China.
[11] Galileu reconhece ter encontrado inspiração para suas teorias – é o desenvolvimento técnico que permite o desenvolvimento da ciência – na observação dos operários do arsenal de Veneza.
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