domingo, 4 de junho de 2006

A ordem do avesso

Na insurgência emergiu uma sociedade dividida entre o lícito e o ilícito, entre carências e conveniências

José de Souza Martins*



O principal protagonista dos acontecimentos da semana trágica em São Paulo, líder do PCC, fez a um policial uma afirmação esclarecedora sobre as contradições em que estamos enredados: "Eu posso encontrar e matar vocês em qualquer lugar, mas vocês não podem me matar aqui". O advogado de um dos criminosos, presente a uma sessão da CPI do Tráfico de Armas, suspeito da compra da gravação do depoimento secreto do diretor do Departamento de Investigações Criminais de São Paulo, reagindo ao questionamento de sua atuação como advogado de criminoso, declarou que ninguém questiona o advogado que defendeu o tesoureiro do PT, envolvido na corrupção do mensalão.

Nessas duas afirmações o que temos é o crime invocando em proveito próprio a ordem formal, seguro do direito do criminoso de ser protegido pelas instituições; seguro de que sua delinqüência, dita do Mal, tem direito a tratamento igual à delinqüência de quem se diz do Bem. A carga de ambigüidade, duplo sentido e dupla intenção, que há nas nossas leis, nas nossas instituições, na nossa prática política e nos nossos costumes, é o ingrediente básico que viabiliza a duplicidade da ordem que está por trás dessas falas e dos fatos. A duplicidade foi gerada e mantida ao longo de uma história social e política que reuniu, no todo dos formalmente iguais, os socialmente desiguais para que desiguais continuassem. Apesar dos bons propósitos, o Brasil não conseguiu superar esse legado.

Os efeitos dessa duplicidade não são privativos do criminoso profissional e do crime organizado. Nem privativos dos políticos e privilegiados que se auto-inocentam, como vimos ao longo dos melancólicos últimos 12 meses. Todos nós também sofremos seus efeitos na miríade de pequenos delitos possíveis e não raro indispensáveis em nosso cotidiano quase vazio de institucionalidade e de legalidade efetivamente acessíveis a todos. Esta é uma sociedade de privilégios, os direitos do cidadão são puramente formais e raramente se materializam para a maioria. Não é estranho que as lutas sociais por direitos tenham sido nos últimos anos substituídas por lutas sociais pelos privilégios grupais e corporativos. Na aparente insurgência dos últimos dias, o que de fato assombrou a todos foi que o crime ganhasse a força simbólica da simultaneidade das ações. Foi como se o pacto tácito da duplicidade da ordem tivesse sido rompido e o crime estivesse impondo a todos a sua própria soberania. Levante, talvez, das classes perigosas. Sempre achamos que pobre e crime andam juntos.

Os governos e a sociedade ficaram chocados porque foram crimes cometidos por atacado, embora já conformados com os mesmos crimes praticados no varejo. O que vimos foi uma onda imensa de ações oportunistas de criminosos de várias categorias, e não necessariamente ligados às grandes organizações criminosas, agindo como se estivessem inseridos num sistema articulado de ações e decisões. Pois, feito o suposto acordo entre autoridades e o líder do PCC, as ações violentas continuaram, ainda que em declínio. Há criminosos que operam à sombra da ação de outros. Também nos casos destes dias, crimes normalmente tolhidos pelo medo da lei, da autoridade e da repressão foram praticados na certeza de que a autoria ficaria borrada na identificação dos autores em face do predomínio de um suposto autor grande e poderoso.

É o que se entende do declínio significativo nos números da violência nos últimos anos, em São Paulo, como mostrou Norman Gall, em artigo publicado pelo Instituto Fernando Braudel, que indicam a eficácia da ação policial preventiva e repressiva. Mas os acontecimentos de agora mostraram que essa eficácia incide mais sobre os pequenos atores e menos sobre os grandes atores. Boa parte da força aparente destes últimos vem menos de uma articulada organização poderosa e numerosa, do que do efeito cascata de ações criminosas maiores repercutindo na disposição para o delito e a violência em grupos independentes. O amedrontamento da sociedade a eles interessa porque aumenta a facilidade do crime cotidiano numa sociedade que já assimilou a violência e desenvolveu estratégias, não raro compreensivelmente cúmplices e autodefensivas, para lidar com ela.

A eficácia policial, porém, não tem incidido sobre o elo mais importante dessa criminalidade coincidente. Menos resultado de uma ordem precisa e orientada, de um sistema organizado, a violência se difunde não necessariamente ou não só a partir da sua produção intencional, mas também e provavelmente muito a partir da leitura que os pequenos grupos independentes fazem das vantagens psicológicas que podem auferir de sua reprodução e multiplicação.

Na sociedade cindida, a espontaneidade do encadeamento da ação criminosa beneficia também o crime organizado. O medo decorrente faz com que a lógica da criminalidade se dissemine e passe a organizar até mesmo a vida de quem nada tem a ver com ela. Por esse meio, o crime ganha espaço, impõe suas regras ao conjunto da sociedade. O crime organizado tem liames clandestinos com membros de todas as categorias sociais, do rico ao pobre. Seja através das drogas, seja através das mercadorias que chegam ao consumidor por meios ilegais: contrabandos, falsificações, roubos.

É impossível compreender a sociedade brasileira hoje sem considerar que é uma sociedade dividida, em que o lícito e o ilícito coexistem, o Bem e o Mal se compreendem, a justiça e a injustiça não se estranham. É essa rede de carências e conveniências que faz do crime organizado um co-gestor da ordem social e da ordem política, que manipula nos bastidores, não raro de dentro da própria cadeia como se viu, os cordéis decisivos da nossa existência. A ordem já não subsiste sem o seu avesso. Essa é a imensa e grave questão política que os partidos ignoram, o Estado dissimula, os cidadãos questionam apenas quando são pessoalmente vitimados pela violência e não percebem que, de muitos modos, impotentes, são cotidianamente cúmplices daquilo que os vitima.

*José de Souza Martins é professor titular de Sociologia da Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo

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