quinta-feira, 30 de março de 2006

Violações

Hélio Schwartsman - Folha de São Paulo - 30/03/2006
http://www1.folha.uol.com.br/folha/pensata/ult510u239.shtml



É grave a violação do sigilo bancário do caseiro Francenildo Costa --que contradisse o ex-ministro Antonio Palocci na CPI dos Bingos-- e sua subseqüente transformação de acusador em acusado. Sempre que o poder do Estado é dirigido contra algum cidadão para atender aos interesses políticos do grupo governante, ocorre mais do que uma ordinária ruptura do Direito. A agressão já não é apenas contra a pessoa atingida pela arbitrariedade, mas contra toda a sociedade, pois as estruturas estatais não podem ser colocadas a serviço de ninguém que não o do próprio Estado --e que, neste caso, não se confunde com governo.

Quando ocupantes circunstanciais do poder se apropriam da coisa pública para fazer valer seus interesses particulares, maculam a democracia. Tal grupo, ao deixar de separar a esfera pública da privada, não se comporta diferentemente de um bando de mafiosos extorquindo um pequeno comerciante.

Apesar dessas considerações de cunho teórico, não creio que a jovem democracia brasileira esteja em risco. Não porque o governo tenha descoberto uma tardia vocação republicana, mas porque as instituições funcionaram. A imprensa gritou, a oposição estrilou, o Ministério Público Federal pediu à Justiça a suspensão do kafkiano inquérito contra o caseiro. Mais do que isso, os responsáveis pelo delito, que eram de altíssimo escalão, foram identificados, perderam seus cargos e deverão responder judicialmente pelos seus atos.

O próprio governo parece ter-se dado conta de que toda a operação para tentar minar a credibilidade do caseiro foi um erro --o famoso tiro pela culatra. Se as reportagens e colunas de bastidores que leio estão bem-informadas, o fator que acabou precipitando a queda de Palocci foi a violação do sigilo, não apenas as suspeitas que contra ele pesavam.

É claro que o restabelecimento do Direito veio tarde para a família de Francenildo Costa, que teve sua privacidade devassada. O suposto pai biológico, que teria pago quase R$ 30 mil para manter suas escapadelas matrimoniais sob sigilo, teve sua história revelada não apenas para a mulher e uns poucos conhecidos, mas para todo o Brasil. Esse foi possivelmente o pior "investimento" da história.

(Antes que me cobrem uma posição, considero que a revista "Época" não agiu bem ao divulgar os extratos bancários obtidos ilegalmente. Não, é claro, pela origem. O dever de sigilo, no caso, cabe às instituições financeiras e a seus funcionários, não à imprensa. De resto, freqüentemente o interesse público justifica a publicação de material obtido sem autorização legal. Um bom exemplo é o dos famosos grampos do BNDES, que revelaram como o governo de Fernando Henrique Cardoso manipulou as privatizações. Aqui, entretanto, o que estava em jogo era a privacidade de um cidadão comum --não uma autoridade pública-- e que não era suspeito de ter cometido nenhum crime).

O caso se torna ainda mais revoltante quando se considera a diferença de tratamento dada aos amigos do poder. Enquanto a movimentação bancária do caseiro foi divulgada pela imprensa sem que nem ao menos houvesse um pedido de quebra de sigilo à Justiça, Paulo Okamotto, o companheiro que costuma pagar despesas da família presidencial, contra o qual pesam suspeitas verossímeis, consegue, através de uma pletora de chicanas jurídicas e parlamentares, manter suas contas indevassadas.

É impressionante, também, o amadorismo da tropa de choque do Planalto. A estratégia de defender-se de uma acusação atacando o acusador em nada contribui para o esclarecimento dos fatos --a rigor, o testemunho de que Palocci freqüentava a chamada casa do lobby poderia ter sido dado por Hitler e ainda assim ser verdadeiro--, mas costuma funcionar tanto nos tribunais como na política. Se se tivesse provado que o caseiro recebeu dinheiro de alguém para denunciar o ministro, a oposição teria saído desmoralizada do episódio. Só que, antes de mandar divulgar essa versão na imprensa, a guarda palaciana deveria certificar-se de sua veracidade. Como não o fez, e Costa tinha uma história verossímil para os pagamentos --os depósitos paternos--, a fatura da violação do sigilo é cobrada com juros. Tudo isso agravado pelo teatro que os responsáveis tentaram montar para esconder suas culpas. Jorge Mattoso, o ex-presidente da Caixa Econômica Federal, chegou a abrir uma sindicância --e lhe deu prazo de 15 dias-- para apurar a violação que ele mesmo cometera. É claro que tamanha incompetência é motivo para júbilo, pois nos permite descobrir o que realmente aconteceu.

Merece consideração ainda as motivações do PT para agir de tal forma. Ao que tudo indica, a inspiração é puramente negativa. Representantes do partido se dispuseram a agir como gângsteres não em nome de um projeto socialista, uma utopia que levaria a sociedade brasileira à redenção, mas apenas para apagar os traços deixados por um ministro que foi desatento ao relacionar-se com pessoas das quais deveria manter distância.

Estou entre os que consideram que políticos, como todos os seres humanos, devem ter direito, senão à privacidade, pelo menos à intimidade. Os relacionamentos extraconjugais do ministro, se é que ele os teve, dizem respeito unicamente a ele e aos diretamente envolvidos. Sabendo, porém, que seu cargo o coloca sob escrutínio diuturno, ele deveria ter tomado as precauções para que as duas esferas não se misturassem. Elas incluem saber onde pisa e a quem mostra a cara.

Outro ponto interessante é a novilíngua que o governo pretende criar. Nas palavras oficiais, prática de caixa dois torna-se "utilização de verbas não-contabilizadas", violação de sigilo --crime tipificado na lei nº 105/ 01, cuja pena pode chegar a quatro anos de reclusão-- vira um inocente "vazamento de informações". Aparentemente, nesse fantástico mundo de Lula, não há lugar para palavras como "República" e "Estado de Direito". A amarga sensação que fica é a de que tudo, afinal, não passa de uma briga de vale-tudo para definir se será a turminha do PT ou a patota do PSDB que terá o privilégio de assenhorar-se da coisa pública pelos próximos quatro anos.

Encerro com duas observações pontuais de violação à lógica:

Não faz sentido o carnaval que se montou em torno da dança da deputada Ângela Guadagnin (PT-SP). Alguns falam mesmo em abrir um processo de cassação contra ela. Grave foi o plenário da Câmara ter inocentado mais dois mensalistas, não o fato de ela ter comemorado o resultado. Se celebrar a absolvição configura quebra de decoro, então deveriam, "ex fortiori", ser cassados os 207 parlamentares que votaram a favor do deputado João Magno (PT-MG).

É escandalosa a renúncia do prefeito de São Paulo, José Serra, para concorrer ao governo do Estado. Quando candidato a alcaide, Serra assumira publicamente o compromisso de que, se eleito fosse, cumpriria o mandato até o final. Se é justo que um ministro de Estado perca o cargo por mentir para os 15 senadores da CPI dos Bingos, o que se deveria fazer com um político que mente para 10 milhões de munícipes?

Hélio Schwartsman, 40, é editorialista da Folha de São Paulo. Bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve para a Folha Online às quintas.

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