quarta-feira, 5 de julho de 2006

Justiça e discriminação racial

Se fizermos uma análise sobre a cor dos presidiários no país, verificaremos que os negros estão presentes nas prisões numa proporção maior do que a sua representação na população, ocorrendo o inverso com a proporção de brancos. A taxa de encarceramento por grupo racial em São Paulo, onde os dados são mais precisos, é de 76,8 por 100 mil habitantes para os brancos e 140 por 100 mil para os pardos, elevando-se a cerca de 421por 100 mil para negros. A probabilidade de um negro estar na prisão é portanto de 5.4 vezes maior do que a de um branco e 3 vezes maior que a de um pardo. Fenômeno semelhante ocorre em outros países com grande população negra e fortes desigualdade sociais, como os EUA, onde as taxas, considerando-se apenas os homens, são de 3.785 por 100 mil para negros, 1.773 para hispânicos e 407 para brancos.

Brancos e não brancos são sentenciados de forma equânime ou não brancos recebem penas maiores e mais duras ?

Feita esta constatação, a questão que se coloca é saber se a desproporção ocorre em função de algum viés no sistema de punição criminal ou é somente o reflexo do maior envolvimento de não brancos no mundo do crime (reflexo, por sua vez, de um viés social mais profundo). Existem com efeito vários estágios no processo de punição criminal que leva da suspeita de crime ao sistema prisional – averiguação policial, inquérito policial, indiciamento pelo Ministérios Público, decisão judicial – e em cada instância decisória existe uma brecha para a introdução indevida do preconceito. Em outro trabalho já verificamos que os negros são mais parados para investigação pela polícia do que os brancos, o que por si só já explicaria em parte a maior proporção de negros entre os detidos. A polícia exerce um papel preliminar importante na etapa in / out, ou seja, na decisão inicial de quem estará dentro e quem ficará de fora do sistema de punição criminal. Procuraremos investigar aqui se, uma vez dentro do sistema, existe algum enviesamento na medida da punição para brancos e não brancos.

Uma análise integral exigiria uma avaliação conjunta do trabalho da polícia judiciária, do promotor público e do juiz. Neste artigo, contudo, abordaremos apenas a etapa final do processo – a decisão judicial – procurando esclarecer a seguinte questão: brancos e não brancos são sentenciados de forma equânime ou não brancos recebem penas maiores e mais duras ?

Esta questão vem sendo pesquisada nos Estados Unidos há várias décadas e as evidências encontradas até agora são dúbias (Barkan, 1997). Os estudos anteriores aos anos 70 usualmente constatavam que não brancos recebiam penas maiores que brancos, sendo maior as probabilidade de serem mandados para a prisão e de obterem sentenças maiores. Muitos destes estudos, porém, continham sérias deficiências metodológicas, como a ausência de controle sobre outras variáveis relevantes, como grau de seriedade do crime e reincidência. As penas serão naturalmente maiores para crimes mais sérios e para criminosos reincidentes, independentemente da cor dos criminosos. Assim, em muitos casos os não brancos recebiam penas maiores não por sua cor, mas pelo fato de terem cometido mais crimes e mais graves. Quando estas variáveis eram controladas, as diferenças entre os grupos raciais desapareciam. Em outras palavras, as sentenças maiores dadas a negros e pardos eram o reflexo de variações legalmente permitidas e não de preconceito racial.

Existem muitas outras variáveis que exercem influência sobre o tamanho da sentença, como por exemplo: condenado empregado ou não, advogado particular ou público, relação do criminoso com a vítima, cor da vítima, vítima ferida durante o crime, utilização de arma de fogo, etc. Uma pesquisa completa deveria idealmente contemplar todas estas variáveis, de modo a eliminar a possibilidade de espuriedade na relação entre cor e severidade da pena. É possível pensar, por exemplo, que negros recebam penas maiores não por serem negros mas antes por serem mais pobres, o que lhes dificultaria a contratação de melhores advogados ou ainda porque o desemprego é maior na comunidade negra.

A análise que se segue é limitada, uma vez que controlamos apenas o grau de seriedade do crime e a magnitude da reincidência, que são os dois maiores determinantes do tamanho da pena, mas nem de longe os únicos.

De 12199 processos da justiça estadual paulista de que dispúnhamos para análise, extraímos para a pesquisa 637 condenações por homicídio (159 pessoas), 4134 condenações por roubo (813 pessoas) e 2194 condenações por furto (335 pessoas), totalizando 6965 processos relativos a 1307 pessoas. A tabela abaixo apresenta a distribuição da amostra por cor.

Homicídios

Roubos

Furtos

Brancos

54,7

54,3

58,8

Pardos

38,3

33,4

29,8

Negros

6,2

11,5

11,6

N

159

813

335

Fonte: SAP – Secretaria da Administração Penitenciária

Tanto em termos de cor, quanto de estado civil e origem regional, as características da amostra se assemelham às características da população prisional paulista. Não é certo, todavia, que os resultados possam ser generalizados para além da amostra, uma vez que os 1307 indivíduos não foram selecionados aleatoriamente de uma listagem dos 42.000 presos ora existentes no Estado, mas apenas da Penitenciária de Araraquara, em 1997.

Feitas essas ressalvas metodológicas, os primeiros dados substantivos que nos chamam a atenção são os seguintes:

Anos de Prisão

Hom.

Roub.

Furt.

N° de condenações

Hom.

Roub.

Furt.

Branc.

20,1

25,7

17,1

1,4

4,1

3,9

Pardos

25,0

20,1

16,7

1,7

3,3

4,0

Negros

35,7

23,1

16,7

1,8

3,9

4,0

Fonte: SAP – Secretaria da Administração Penitenciária

1) Os negros condenados por homicídio receberam mais anos de prisão do que os pardos e estes mais anos de condenação do que os brancos. Quando passamos para os condenados por roubo e furto, no entanto, observa-se que as sentenças dos brancos são maiores do que aquelas recebidas pelos não brancos.

2) Como pode ser observado na metade direita da tabela, a quantidade de anos de prisão recebida em média por cada grupo racial está aparentemente relacionada com a média de anos de condenação dado a cada grupo. A única exceção refere-se ao caso dos brancos condenados por furto, que receberam uma média de anos de prisão (17,11) ligeiramente superior a que se deveria esperar em função do número de condenações (3,95).

De modo geral, a correlação bivariada entre o número de condenações e a sentença traduzida em anos de prisão revelou-se estatisticamente significativa, para os 3 tipos de delito: os coeficientes de correlação de Pearson obtidos foram de .49 para homicídios, .78 para roubo e .25 para furto, todos com probabilidade < .000. Em outras palavras, independentemente da cor do indivíduo, quanto maior o número de condenações naquele delito, maior a sentença recebida. A relação é mais forte no caso dos roubos e mais fraca nos furtos, mas é significativa nos 3 delitos analisados.

É possível portanto prever com precisão razoável quantos anos um condenado receberá de prisão, sem considerar sua cor, apenas conhecendo a natureza e a magnitude dos delitos cometidos. Com efeito, quando colocamos numa análise de regressão os "anos de prisão recebidos" como variável dependente e a "magnitude das condenações" como variável independente, controlando pelo tipo de delito, encontramos nos três casos correlações significativas: quanto maior a magnitude das condenações, maior a sentença, como seria lógico esperar.

O que acontece então quando introduzimos a variável "cor" ( dicotomizada entre brancos / não brancos) na equação ? Em outras palavras: ganhamos alguma coisa na previsão do tamanho da sentença se acrescentarmos à informação sobre a quantidade de crimes cometidos a informação sobre a cor do criminoso ? Esta é uma maneira de verificarmos se o fator preconceito joga algum papel no momento da sentença. Num sistema razoavelmente equânime, a cor do indivíduo – uma variável extralegal – não deve nos trazer informações adicionais sobre a pena recebida por ele. Outras coisas sendo iguais, criminosos que cometerem o mesmo tipo de crime e a mesma quantidade de crimes devem receber exatamente a mesma pena, independente de sua cor. Por outro lado, se observadas estas condições, não brancos recebem penas maiores do que brancos, é possível suspeitar que o sistema está enviesado em detrimento dos primeiros.

as equações de regressão sugerem que a cor do indivíduo não tem uma influência forte na determinação do tamanho de sua sentença, pesando mais na decisão do juiz o tipo e a magnitude de crimes cometidos, que são critérios exclusivamente legais

Introduzimos a informação sobre a cor dos indivíduos como variável independente nos 3 delitos analisados e em nenhum dos casos aumentamos significativamente nossa capacidade de previsão sobre a sentença recebida. De forma geral, o procedimento sugere-nos que não se ganham mais ou menos anos de prisão na sentença pelo fato de ser negro ou pardo, embora possam existir exceções individuais.

Resumo das regressões para homicídio, roubo e furto: variável dependente "anos de prisão" / independentes: "magnitude de condenações" e "cor". Método: stepwise

Homicídio

Roubo

Furto

R múltiplo

.49

.79

.26

F

49,3

451,1

7,9

T "condenações"

7,02

sig. 000

35,58

sig. 000

4,37

sig. 000

T "cor"

1,91

sig. 057

1,40

sig. 159

0,39

sig. 695

Constante

5,25

sig. 000

4,35

sig. 000

4,67

sig. 000

Durbin-Watson

1,8

1,8

1,8

Assim como nas correlações bivariadas, a equação mais consistente é a que coloca o número de roubos como previsor do número de anos de condenação e a menos consistente, embora significativa, é a equação de furtos. Quanto à variável "cor", como pode ser comparado através de T de student, é mais forte e por muito pouco deixa de ser significativa para a previsão das sentenças de homicídio e mais fraca em roubo e furto. Traduzindo para um linguajar mais compreensível, as equações de regressão sugerem que a cor do indivíduo não tem uma influência forte na determinação do tamanho de sua sentença, pesando mais na decisão do juiz o tipo e a magnitude de crimes cometidos, que são critérios exclusivamente legais.

Uma maneira adicional de checar a existência de preconceito é atentar para os casos desviantes (outliers), qual sejam, pessoas que receberam muito mais ou muito menos anos de prisão do que seria esperado, em função do tipo e quantidade de crimes cometidos. Se discriminação fosse um fator relevante, deveríamos esperar que os casos desviantes para cima – sentenças maiores do que as esperadas – fossem dadas aos negros e pardos, enquanto os casos desviantes para baixo – sentenças menores que as esperadas – fossem atribuídas aos brancos. A análise destes casos desviantes, porém, tampouco revelou qualquer distorção por parte do Judiciário, uma vez que encontramos aleatoriamente tanto brancos quanto não brancos entre os desviantes.

A hipótese da "liberação" (liberation hypothesis)

Quanto mais grave o tipo de crime (roubo, homicídio), segundo a teoria da "liberação", menor a possibilidade de arbítrio por parte do juiz, uma vez que as normas tornam-se mais restritas (Spohn e Cederblom, 1991). De acordo com a hipótese, os juizes consideram homicídio, estupro e roubo como crimes tão graves que eles sentem que a maioria destes criminosos merece penas severas, independentemente da cor do autor. Nos crimes de menor gravidade, como o furto ou contravenções penais, seria mais natural encontrarmos a influência danosa do preconceito, uma vez que o juiz tem maior amplitude decisória, quer dizer, está "liberado" para tomar decisões baseado em outros critérios menos restritos. Nas sentenças por furto deveríamos encontrar, segundo a teoria, menos influência dos fatores legais e mais dos fatores extralegais. Vimos acima que, no caso das sentenças de furto, conforme o previsto, diminui o peso dos fatores legais pois a correlação entre anos de condenação e magnitude de crimes diminui. Mas, ao contrário do que prevê a teoria da liberação, o elemento "cor" é ainda menos influente nos furtos do que no caso dos crimes mais graves. A eventual discriminação deixa de aparecer mesmo onde mais provável seria sua manifestação.

Os argumentos e equações acima não são certamente provas irrefutáveis de que não exista discriminação no momento de aplicação da sentença, mas são um forte indício de que os fatores legais são os principais elementos levados em consideração pelo Judiciário, principalmente quando da condenação por roubos. Se os processos criminais incluíssem todas as informações necessárias, seria possível no futuro exercer controle sobre outras variáveis, corroborando com maior firmeza os resultados aqui obtidos. Não se deve esquecer também dos outros momentos do processo de punição criminal: embora as sentenças sejam equânimes, a discriminação pode aparecer, conforme sugerimos, no momento de parar para averiguações, de iniciar o inquérito, de propor a condenação ou ainda no tratamento durante a fase de execução da pena.

Finalmente, é preciso não perder de vista a discriminação que existe "fora do sistema" e seus reflexos sobre aqueles que se envolvem com o crime. Muito bom que a justiça julgue igualmente brancos e negros envolvidos com o crime, como sugerem os dados aqui apresentados. Mas, indo além, tal resultado passa ao largo da questão maior do porquê, afinal, tantos membros da comunidade negra são conduzidos para o submundo do crime ¨

Tulio Kahn

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