segunda-feira, 28 de maio de 2007

Autonomia Universitária - 'Todo mundo grita, ninguém tem razão'

Para filósofo, está na hora de o governo reunir representantes dos 3 poderes e chamar universidades para discutir a autonomia.
Jornal O Estado de São Paulo:
http://www.estado.com.br/editorias/2007/05/28/ger-1.93.7.20070528.7.1.xml

'Todo mundo grita, ninguém tem razão'

Entrevista - Roberto Romano: professor titular de Filosofia da Unicamp

O Estado de São Paulo - Simone Iwasso
http://www.estado.com.br/editorias/2007/05/28/ger-1.93.7.20070528.7.1.xml

Um grande palco, com diversas coisas acontecendo ao mesmo tempo, mas com os holofotes apontando excessivamente para um pequeno trecho de cada vez. Sem enxergar o contexto, o restante que pode explicar e ser contrapeso ao que está sendo ressaltado fica de fora. Assim, todos estão dizendo a verdade e todos estão mentindo, já que cada recorte só fica verdadeiro se visto em ligação com o todo. A alegoria, retirada de um livro do alemão Erich Auerbach, é usada pelo filósofo Roberto Romano, professor titular de Filosofia da Unicamp, para analisar o impasse que se instaurou na USP desde o início do ano com o debate sobre a autonomia, motivado por decretos do governador José Serra (PSDB). Para entender a situação, o professor retoma a Constituição de 88, que garantiu a autonomia universitária, e a falta de regulamentação que se seguiu após sua promulgação - responsabilidade, segundo ele, dos sucessivos governos, ministros, parlamentares, reitores, professores e movimentos estudantis.

O senhor considera que a autonomia universitária está em risco?

É evidente que há risco.Os decretos em cascata do governo definem padrões de administração. Dissolver a estrutura do Cruesp (Conselho de Reitores das Universidades Estaduais Paulistas) e colocar o secretário de Ensino Superior como presidente quando havia um mandato em vigência foi uma espécie de demissão sem cerimônia da reitora. Depois veio uma série de decretos que seriam aparentemente uma prestação de contas, mas que também são mudanças estruturais de alocação de recursos. Universidade tem departamentos, setores, conselhos. As pesquisas são feitas não de maneira sincrônica, mas cada uma com um tempo e necessidade; uma demanda mais material, outra menos. Uma coisa é prestar contas, outra é passar sob a égide do governador.

O governo devolveu a presidência do Cruesp aos reitores e afirmou que os decretos são para todos os setores do funcionalismo, mas não atingem as universidades.

Tudo isso vêm na forma de procedimento habitual do Executivo nacional - federal, estadual ou municipal. Primeiro ele faz o que deseja e depois pede desculpas. Não consulta, não fala, não discute. Reitores foram tomados de surpresa, apenas comunicados. Pinotti foi reitor da Unicamp, Serra foi professor. Mas, quando agem como o Executivo, deixam a prudência de lado e mesmo idéias boas são totalmente mal recebidas porque jogadas de surpresa. Nesse caso, existe um propósito teoricamente bom que é a prestação de contas, mas não houve negociação.

É possível dizer que alguém está com mais razão nesse debate?

Vou usar uma imagem do Erich Auerbach, no livro Mimeses, quando ele fala da técnica das luzes, do efeito holofote.Você tem um grande palco, onde diversas coisas acontecem sincronicamente. Na hora da luta, você ilumina somente um ponto do palco. Aquilo que você ilumina é verdadeiro, mas, ao focar a luz em só um ponto, fica falso. O que estamos vendo é que estudantes colocam o holofote num pedaço do palco e o governo coloca em outro. Os dois estão dizendo a verdade e os dois estão mentindo. É preciso tempo e paciência para iluminar todo o palco.

Qual é então a situação da autonomia?

A autonomia universitária não foi regulamentada no plano federal até hoje. É um mandamento sem nenhum corpo, uma idéia sem ossatura. Ela foi colocada na Constituição pelo Florestan Fernandes, que estava preocupado com as instituições de pesquisa. E segue o princípio da Constituição, que é a autonomia dos Estados, dos municípios, dos poderes. Veja o Ministério Público, quanta coisa se fez a partir da autonomia. Ela andou lentamente, mas andou - tanto que os últimos retoques nesse ponto foram dados no ano passado. No caso das universidades, nada foi feito. É necessária uma regulamentação que estabeleça normas, e a falta disso é culpa dos sucessivos governos federais, dos ministros da Educação, dos parlamentares e dos reitores das universidades federais, porque não interessou, nesses anos todos, discutir seriamente a autonomia. Eles preferiram manter a garantia de liberar recursos batendo na porta, usando influência junto a ministros.

O Estado de São Paulo, em 1989, fez um decreto sobre a autonomia. Não foi um começo?

Qualquer decreto para as estaduais se empalidece se não é baseado na autonomia das federais. Ninguém levou a sério a regulamentação e a implementação da autonomia universitária. Ficou um princípio morto, que não traz nenhum benefício para ninguém. O decreto de São Paulo, de 1989, do então governador Orestes Quércia, não traz garantias, até porque pode ser revogado a qualquer momento. Na época do Fleury, o governo repassava menos verba para as estaduais e os reitores não reclamavam porque sabiam que dependiam de um decreto que podia ser revogado. Na Constituição do Estado, a Fapesp tem garantida sua autonomia de recursos, um processo encaminhado pelo Montoro. Para as universidades, não há isso. E aí entra a culpa dos sucessivos governos, reitores, professores e movimento estudantil. Não é possível dizer que os docentes são inocentes, que essa questão caiu do céu agora. Basta um pouco de boa-fé e conhecimento jurídico para saber.

Ações judiciais questionando os decretos seriam alternativa?

Não adianta discutir o princípio da autonomia porque ele já está na Constituição. Mas também ninguém pode cobrar do Estado o respeito absoluto a isso, porque não há nada resolvido. Na hora da briga, sempre aparece alguém querendo ter toda a razão. É a imagem dos holofotes. Não há nenhum entendimento no lado docente, nem no dos estudantes, nem nas cúpulas das universidades. Também não há entendimento na Assembléia e no governo. Quanto a essa questão, a única esperança seria a Constituição federal, mas ainda não há essa regulamentação. Se você entra na Justiça, como vai agir uma casa como o Supremo Tribunal Federal (STF)? Ele terá de dizer que os decretos operam nessa franja, nesse vácuo. Repito, a falta de responsabilidade sobre a situação é de todo mundo. Outro exemplo: até hoje as estaduais não encaminharam uma solução para a aposentadoria dos professores, não se criou um fundo de pensão. Isso é uma maneira de ficar na mão do governo.

A academia estaria disposta a retomar essa discussão?

As pessoas falam do governo, dos estudantes, dos professores como se fosse um monobloco. E isso não é verdadeiro. Você tem o secretário com sua opinião, o governador que ainda não manifestou claramente o que pensa sobre a essência da questão e a base parlamentar. Do lado docente e estudantil, também não é monobloco. Temos desde esses grupos que agem como fascistas para impor sua opinião até pessoas sérias, que não concordam com essa invasão da reitoria, não concordam com essa maneira de protestar, mas que estão realmente preocupadas com a autonomia. É preciso colocar os holofotes em todos os cantos do palco.

Esse momento muito heterogêneo de discussão seria uma oportunidade para propor uma debate sobre a regulamentação?

Está na hora de o governo reunir representantes dos três poderes e chamar universidades, especialistas em ciência e tecnologia para elaborar um plano com base em estudos jurídicos. Se vão abrir um clube, fazem estudos jurídicos, discutem com a sociedade. Agora, para uma coisa tão séria quanto a autonomia das universidades, ou se discute em praça pública ou fechado em gabinetes.

Existe também o fato de outras reivindicações entrarem no protesto de alunos, professores e funcionários.

Um elemento que me deixa muito irritado é o oportunismo de alguns setores. Autonomia é uma coisa gravíssima, política, social, científica e tecnológica. Não dá para misturar com 3% de aumento. É oportunismo atroz. Parece que está se comparando autonomia com aporte de R$ 200 nos salários. Se a gente diz que o governo está errado, você é elogiado. Se fala que os reitores estão errados, aí é vaiado.

A impressão que passa é a de que a universidade é muito competente e eficiente na hora de estudar as situações da sociedade, mas, quando se trata de temas internos, há uma grande dificuldade.

Eu disse uma coisa semelhante em uma reunião do conselho de graduação da Unicamp. Está na hora de a universidade começar a tratar seus assuntos internos com o mesmo rigor e exigência que dispensa para a física, a lógica, a química, a matemática, as ciências de maneira geral. Ela trata de suas questões, até hoje, empiricamente. Todo mundo grita, ninguém tem razão.

Quem é Roberto Romano

Paranaense, 61 anos, leciona História da Filosofia Moderna na graduação do Departamento de Filosofia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp e Ética e Filosofia na pós do mesmo instituto

Autor de Conservadorismo Romântico (Ed. Unesp) e Caldeirão de Medéia (Ed. Perspectiva)

Foi vice-diretor da Faculdade de Educação da Unicamp
Autonomia Universitária - 'Todo mundo grita, ninguém tem razão'

Para filósofo, está na hora de o governo reunir representantes dos 3 poderes e chamar universidades para discutir a autonomia.
Jornal O Estado de São Paulo:
http://www.estado.com.br/editorias/2007/05/28/ger-1.93.7.20070528.7.1.xml

'Todo mundo grita, ninguém tem razão'

Entrevista - Roberto Romano: professor titular de Filosofia da Unicamp

O Estado de São Paulo - Simone Iwasso
http://www.estado.com.br/editorias/2007/05/28/ger-1.93.7.20070528.7.1.xml

Um grande palco, com diversas coisas acontecendo ao mesmo tempo, mas com os holofotes apontando excessivamente para um pequeno trecho de cada vez. Sem enxergar o contexto, o restante que pode explicar e ser contrapeso ao que está sendo ressaltado fica de fora. Assim, todos estão dizendo a verdade e todos estão mentindo, já que cada recorte só fica verdadeiro se visto em ligação com o todo. A alegoria, retirada de um livro do alemão Erich Auerbach, é usada pelo filósofo Roberto Romano, professor titular de Filosofia da Unicamp, para analisar o impasse que se instaurou na USP desde o início do ano com o debate sobre a autonomia, motivado por decretos do governador José Serra (PSDB). Para entender a situação, o professor retoma a Constituição de 88, que garantiu a autonomia universitária, e a falta de regulamentação que se seguiu após sua promulgação - responsabilidade, segundo ele, dos sucessivos governos, ministros, parlamentares, reitores, professores e movimentos estudantis.

O senhor considera que a autonomia universitária está em risco?

É evidente que há risco.Os decretos em cascata do governo definem padrões de administração. Dissolver a estrutura do Cruesp (Conselho de Reitores das Universidades Estaduais Paulistas) e colocar o secretário de Ensino Superior como presidente quando havia um mandato em vigência foi uma espécie de demissão sem cerimônia da reitora. Depois veio uma série de decretos que seriam aparentemente uma prestação de contas, mas que também são mudanças estruturais de alocação de recursos. Universidade tem departamentos, setores, conselhos. As pesquisas são feitas não de maneira sincrônica, mas cada uma com um tempo e necessidade; uma demanda mais material, outra menos. Uma coisa é prestar contas, outra é passar sob a égide do governador.

O governo devolveu a presidência do Cruesp aos reitores e afirmou que os decretos são para todos os setores do funcionalismo, mas não atingem as universidades.

Tudo isso vêm na forma de procedimento habitual do Executivo nacional - federal, estadual ou municipal. Primeiro ele faz o que deseja e depois pede desculpas. Não consulta, não fala, não discute. Reitores foram tomados de surpresa, apenas comunicados. Pinotti foi reitor da Unicamp, Serra foi professor. Mas, quando agem como o Executivo, deixam a prudência de lado e mesmo idéias boas são totalmente mal recebidas porque jogadas de surpresa. Nesse caso, existe um propósito teoricamente bom que é a prestação de contas, mas não houve negociação.

É possível dizer que alguém está com mais razão nesse debate?

Vou usar uma imagem do Erich Auerbach, no livro Mimeses, quando ele fala da técnica das luzes, do efeito holofote.Você tem um grande palco, onde diversas coisas acontecem sincronicamente. Na hora da luta, você ilumina somente um ponto do palco. Aquilo que você ilumina é verdadeiro, mas, ao focar a luz em só um ponto, fica falso. O que estamos vendo é que estudantes colocam o holofote num pedaço do palco e o governo coloca em outro. Os dois estão dizendo a verdade e os dois estão mentindo. É preciso tempo e paciência para iluminar todo o palco.

Qual é então a situação da autonomia?

A autonomia universitária não foi regulamentada no plano federal até hoje. É um mandamento sem nenhum corpo, uma idéia sem ossatura. Ela foi colocada na Constituição pelo Florestan Fernandes, que estava preocupado com as instituições de pesquisa. E segue o princípio da Constituição, que é a autonomia dos Estados, dos municípios, dos poderes. Veja o Ministério Público, quanta coisa se fez a partir da autonomia. Ela andou lentamente, mas andou - tanto que os últimos retoques nesse ponto foram dados no ano passado. No caso das universidades, nada foi feito. É necessária uma regulamentação que estabeleça normas, e a falta disso é culpa dos sucessivos governos federais, dos ministros da Educação, dos parlamentares e dos reitores das universidades federais, porque não interessou, nesses anos todos, discutir seriamente a autonomia. Eles preferiram manter a garantia de liberar recursos batendo na porta, usando influência junto a ministros.

O Estado de São Paulo, em 1989, fez um decreto sobre a autonomia. Não foi um começo?

Qualquer decreto para as estaduais se empalidece se não é baseado na autonomia das federais. Ninguém levou a sério a regulamentação e a implementação da autonomia universitária. Ficou um princípio morto, que não traz nenhum benefício para ninguém. O decreto de São Paulo, de 1989, do então governador Orestes Quércia, não traz garantias, até porque pode ser revogado a qualquer momento. Na época do Fleury, o governo repassava menos verba para as estaduais e os reitores não reclamavam porque sabiam que dependiam de um decreto que podia ser revogado. Na Constituição do Estado, a Fapesp tem garantida sua autonomia de recursos, um processo encaminhado pelo Montoro. Para as universidades, não há isso. E aí entra a culpa dos sucessivos governos, reitores, professores e movimento estudantil. Não é possível dizer que os docentes são inocentes, que essa questão caiu do céu agora. Basta um pouco de boa-fé e conhecimento jurídico para saber.

Ações judiciais questionando os decretos seriam alternativa?

Não adianta discutir o princípio da autonomia porque ele já está na Constituição. Mas também ninguém pode cobrar do Estado o respeito absoluto a isso, porque não há nada resolvido. Na hora da briga, sempre aparece alguém querendo ter toda a razão. É a imagem dos holofotes. Não há nenhum entendimento no lado docente, nem no dos estudantes, nem nas cúpulas das universidades. Também não há entendimento na Assembléia e no governo. Quanto a essa questão, a única esperança seria a Constituição federal, mas ainda não há essa regulamentação. Se você entra na Justiça, como vai agir uma casa como o Supremo Tribunal Federal (STF)? Ele terá de dizer que os decretos operam nessa franja, nesse vácuo. Repito, a falta de responsabilidade sobre a situação é de todo mundo. Outro exemplo: até hoje as estaduais não encaminharam uma solução para a aposentadoria dos professores, não se criou um fundo de pensão. Isso é uma maneira de ficar na mão do governo.

A academia estaria disposta a retomar essa discussão?

As pessoas falam do governo, dos estudantes, dos professores como se fosse um monobloco. E isso não é verdadeiro. Você tem o secretário com sua opinião, o governador que ainda não manifestou claramente o que pensa sobre a essência da questão e a base parlamentar. Do lado docente e estudantil, também não é monobloco. Temos desde esses grupos que agem como fascistas para impor sua opinião até pessoas sérias, que não concordam com essa invasão da reitoria, não concordam com essa maneira de protestar, mas que estão realmente preocupadas com a autonomia. É preciso colocar os holofotes em todos os cantos do palco.

Esse momento muito heterogêneo de discussão seria uma oportunidade para propor uma debate sobre a regulamentação?

Está na hora de o governo reunir representantes dos três poderes e chamar universidades, especialistas em ciência e tecnologia para elaborar um plano com base em estudos jurídicos. Se vão abrir um clube, fazem estudos jurídicos, discutem com a sociedade. Agora, para uma coisa tão séria quanto a autonomia das universidades, ou se discute em praça pública ou fechado em gabinetes.

Existe também o fato de outras reivindicações entrarem no protesto de alunos, professores e funcionários.

Um elemento que me deixa muito irritado é o oportunismo de alguns setores. Autonomia é uma coisa gravíssima, política, social, científica e tecnológica. Não dá para misturar com 3% de aumento. É oportunismo atroz. Parece que está se comparando autonomia com aporte de R$ 200 nos salários. Se a gente diz que o governo está errado, você é elogiado. Se fala que os reitores estão errados, aí é vaiado.

A impressão que passa é a de que a universidade é muito competente e eficiente na hora de estudar as situações da sociedade, mas, quando se trata de temas internos, há uma grande dificuldade.

Eu disse uma coisa semelhante em uma reunião do conselho de graduação da Unicamp. Está na hora de a universidade começar a tratar seus assuntos internos com o mesmo rigor e exigência que dispensa para a física, a lógica, a química, a matemática, as ciências de maneira geral. Ela trata de suas questões, até hoje, empiricamente. Todo mundo grita, ninguém tem razão.

Quem é Roberto Romano

Paranaense, 61 anos, leciona História da Filosofia Moderna na graduação do Departamento de Filosofia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp e Ética e Filosofia na pós do mesmo instituto

Autor de Conservadorismo Romântico (Ed. Unesp) e Caldeirão de Medéia (Ed. Perspectiva)

Foi vice-diretor da Faculdade de Educação da Unicamp
{USP} Os Generais caíram, mas a burocracia autoritária continuou trabalhando

Não estão só aqui na USP e no Judiciário, mas estão em toda a Administração Pública, principalmente em Brasília. Inclusive pode-se dizer que eles compõem a chamada "Forças Ocultas". Estão por baixo dos panos, conspirando contra os movimentos sociais, contra os líderes democráticos, contra a ocupação na USP, etc.

Os Generais caíram, mas a burocracia autoritária continuou trabalhando

Hoje a USP está dividida. De um lado professores que apóiam a ocupação da Reitoria e de outro professores que condenam a ocupação. De um lado professores que gritam por negociação sem a presença da polícia e de outro professores que chamam o batalhão de choque da PM e a repressão. De um lado professores que pregam e exigem Democracia e de outro professores que defendem o autoritarismo e regimes fascistas. De um lado docentes a favor dos alunos e da coletividade e de outro docentes a favor do Estado e da classe dominante.

Por que ocorreu esta divisão ? Não seria a Universidade um Centro de Pensamento e de defesa da Democracia, das negociações, etc ? Um Centrro contra todo tipo de repressão e autoritarismo ? Seria, se uma coisa não tivesse acontecido em um passado próximo: os Generais caíram, mas a burocracia autoritária continuou trabalhando.

O regime militar acabou no plano político, mas continuou dentro da Administração Pública. Todos os colaboradores do regime que ingressaram no serviço público por ordem dos Generais continuaram trabalhando como se nada tivesse acontecido. O Governo Democrático entrou, mas teve que vestir as roupas, os instrumentos e aceitar os criados do autoritarismo.

Por isso vivemos dentro de um regime esquizofrênico. De um lado pessoas que trabalham arrojadamente para estabelecer um sistema Democrático e um Estado de Direito efetivo e de outro um grupo de burocratas que tentam manter os velhos hábitos autoritários da ditadura. De um lado professores que gritam por democracia e negociação e de outro docentes que chamam o batalhão de choque.

Isso acontece, principalmente, no Judiciário. Os desembargadores de hoje começaram suas carreiras como Juízes durante o regime militar. Não só os desembargadores, mas muitos professores da USP, assim como de outras universidades, entraram no serviço público por ordem dos generais ou em concurso acompanhado de perto pelo Generais. Opositores do regime não entravam no serviço público. Basta lembrar que a maioria dos opositores do regime estavam exilados, presos ou escondidos. Os que continuaram trabalhando apoivam diretamente a ditadura ou fingiam que apoivam.

Isso explica perfeitamente o que está ocorrendo na USP hoje. Isso explica o porquê de não conseguirmos estabelecer um Estado de Direito efetivo no Brasil, assim como a Democracia, reduzir as desigualdades, etc. Não conseguimos porque parte dos burocratas da administração públicas foram contratados pelos militares, sob supervisão dos militares ou em concursos promovidos pelos militares. A ditadura acabou na esfera política, mas continua dentro da administração pública.

Certamente, existem pessoas que foram contratadas pela ditadura, mas que posteriormente se converteram ao regime democrático. Contudo, essas pessoas são minoria. A maioria dos filhotes da ditadura continuam aplicando e desenvolvendo o pensamento autoritário.

Isso ocorreu principalmente dentro da Polícia, inclusive dentro do serviço secreto da ditadura. Todos os arapongas e agentes do regime militar continuaram trabalhando. Certamente, os órgãos mudaram de nomes, as viaturas mudaram de cores, os uniformes mudaram de estilista. Mas o velho pensamento autoritário continuou dando as ordens, prendendo pessoas, investigando, usando pau de arara, choque elétrico, etc.

Inclusive, contam alguns pescadores, que os torturadores da ditadura, cansado daquele serviço monótono, resolveram mudar de repartição e foram trabalhar na Secretaria de Direitos Humanos. Como tinham uma longa ficha de trabalho com presos e excluídos foram aprovados com louvor.

Não só isso. Após a democratização e a constituição de 1988 formaram-se pequenos grupos dentro da burocracia estatal. Grupos parecidos com máfia e cuja finalidade é reunir pessoas que tem pensamento autoritário parecido com os burocratas para substituí-los nos cargos. Certamente, isso não se aplica a cargos de pequena relevância, mas sim a cargos de grande peso. Assim, os concursos para Juiz continua sendo um concurso autoritário, onde a prova oral e outras avaliações subjetivas visam deixar ingressar na carreira da Magistratura apenas pessoas conservadoras e, na maioria das vezes, com um pensamento autoritário. Pessoas que julgam com base na razão de Estado, na Constituição da Ditadura, AI5, etc. Pessoas que julgam contra os direitos da coletividade, os movimentos sociais, etc.

Isso explica a sentença de reintegração de posse da USP, a absolvição dos policiais e do Coronel Ubiratan, a absolvição dos policiais e demais oficiais que comandaram o massacre de Carajás, etc.

Isso também se aplica nos concursos da USP. Inclusive hoje, no concurso de seleção para Professor Titular da Faculdade de Direito da USP (Largo São Francisco) eu ouvi exatamente isso. Um dos Professores da banca lembrou que o candidato já tinha passado por outros membros da banca em outros concursos (doutorado, livre-docência) e que isso significava que todos se conheciam a um bom tempo, etc. Isso mostra que o concurso é uma máfia e que só vira Professor Titular da USP quem é integrante da máfia a um bom tempo. Novato não entra nem com reza braba. Certamente, existem as exceções, mas a regra é o corporativismo. E pior, chamam isso de mérito.

Não só isso, indica que o concurso, com esses critérios subjetivos, seleciona apenas aqueles que estão alinhados com o pensamento autoritário dos selecionadores. São velhos amigos. Defenderam juntos o regime militar, etc.

Essas pequenas máfias dentro da burocracia estatal perpetua o pensamento autoritário e impede a instalação da Democracia plena, assim como do Estado de Direito no Brasil. Não só isso, desvirtua completamente a administração pública que acaba se transformando em uma cadeia de apadrinhados. Lembrem da Carta do Pinotti pedindo vaga na Pós-Graduação da USP.

Por que você acha que os arquivos militares não são abertos no Brasil ? Por que o Presidente Lula não quer ou por ação das "Forças Ocultas" ?

Portanto, aqui na USP a ocupação está revelando quem são os filhotes da ditaduras, ou seja, quem são os burocratas autoritários que trabalham contra a coletividade, contra os movimentos sociais, contra a Democracia, contra o Estado de Direito e contra a autonomia da Universidade. Não estão só aqui na USP e no Judiciário, mas estão em toda a Administração Pública, principalmente em Brasília. Inclusive pode-se dizer que eles compõem a chamada "Forças Ocultas". Estão por baixo dos panos, conspirando contra os movimentos sociais, contra os líderes democráticos, contra a ocupação na USP, etc.

Esses indivíduos devem ser mapeados. Isso porque se quisermos construir uma Democracia, sem desigualdades sociais e um Estado de Direito efetivo teremos que arrancá-los de dentro da burocracia estatal. Não só eles, mas também seus herdeiros. A administração pública tem que ser depurada. Temos que fazer uma revolução cultural dentro da burocracia.

Olhe bem de perto para quem está chamando o choque para a ocupação. Veja os detalhes e analise suas carreiras. Você verá exatamente o que eu disse. Se ainda não acreditou cruze a vida e a formação dessas pessoas com a ditadura e você verá que a maioria delas passou ilesas pelo regime. Certamente, existem pontos fora da reta. Mas a exceção não é a regra.
{USP} Os Generais caíram, mas a burocracia autoritária continuou trabalhando

Não estão só aqui na USP e no Judiciário, mas estão em toda a Administração Pública, principalmente em Brasília. Inclusive pode-se dizer que eles compõem a chamada "Forças Ocultas". Estão por baixo dos panos, conspirando contra os movimentos sociais, contra os líderes democráticos, contra a ocupação na USP, etc.

Os Generais caíram, mas a burocracia autoritária continuou trabalhando

Hoje a USP está dividida. De um lado professores que apóiam a ocupação da Reitoria e de outro professores que condenam a ocupação. De um lado professores que gritam por negociação sem a presença da polícia e de outro professores que chamam o batalhão de choque da PM e a repressão. De um lado professores que pregam e exigem Democracia e de outro professores que defendem o autoritarismo e regimes fascistas. De um lado docentes a favor dos alunos e da coletividade e de outro docentes a favor do Estado e da classe dominante.

Por que ocorreu esta divisão ? Não seria a Universidade um Centro de Pensamento e de defesa da Democracia, das negociações, etc ? Um Centrro contra todo tipo de repressão e autoritarismo ? Seria, se uma coisa não tivesse acontecido em um passado próximo: os Generais caíram, mas a burocracia autoritária continuou trabalhando.

O regime militar acabou no plano político, mas continuou dentro da Administração Pública. Todos os colaboradores do regime que ingressaram no serviço público por ordem dos Generais continuaram trabalhando como se nada tivesse acontecido. O Governo Democrático entrou, mas teve que vestir as roupas, os instrumentos e aceitar os criados do autoritarismo.

Por isso vivemos dentro de um regime esquizofrênico. De um lado pessoas que trabalham arrojadamente para estabelecer um sistema Democrático e um Estado de Direito efetivo e de outro um grupo de burocratas que tentam manter os velhos hábitos autoritários da ditadura. De um lado professores que gritam por democracia e negociação e de outro docentes que chamam o batalhão de choque.

Isso acontece, principalmente, no Judiciário. Os desembargadores de hoje começaram suas carreiras como Juízes durante o regime militar. Não só os desembargadores, mas muitos professores da USP, assim como de outras universidades, entraram no serviço público por ordem dos generais ou em concurso acompanhado de perto pelo Generais. Opositores do regime não entravam no serviço público. Basta lembrar que a maioria dos opositores do regime estavam exilados, presos ou escondidos. Os que continuaram trabalhando apoivam diretamente a ditadura ou fingiam que apoivam.

Isso explica perfeitamente o que está ocorrendo na USP hoje. Isso explica o porquê de não conseguirmos estabelecer um Estado de Direito efetivo no Brasil, assim como a Democracia, reduzir as desigualdades, etc. Não conseguimos porque parte dos burocratas da administração públicas foram contratados pelos militares, sob supervisão dos militares ou em concursos promovidos pelos militares. A ditadura acabou na esfera política, mas continua dentro da administração pública.

Certamente, existem pessoas que foram contratadas pela ditadura, mas que posteriormente se converteram ao regime democrático. Contudo, essas pessoas são minoria. A maioria dos filhotes da ditadura continuam aplicando e desenvolvendo o pensamento autoritário.

Isso ocorreu principalmente dentro da Polícia, inclusive dentro do serviço secreto da ditadura. Todos os arapongas e agentes do regime militar continuaram trabalhando. Certamente, os órgãos mudaram de nomes, as viaturas mudaram de cores, os uniformes mudaram de estilista. Mas o velho pensamento autoritário continuou dando as ordens, prendendo pessoas, investigando, usando pau de arara, choque elétrico, etc.

Inclusive, contam alguns pescadores, que os torturadores da ditadura, cansado daquele serviço monótono, resolveram mudar de repartição e foram trabalhar na Secretaria de Direitos Humanos. Como tinham uma longa ficha de trabalho com presos e excluídos foram aprovados com louvor.

Não só isso. Após a democratização e a constituição de 1988 formaram-se pequenos grupos dentro da burocracia estatal. Grupos parecidos com máfia e cuja finalidade é reunir pessoas que tem pensamento autoritário parecido com os burocratas para substituí-los nos cargos. Certamente, isso não se aplica a cargos de pequena relevância, mas sim a cargos de grande peso. Assim, os concursos para Juiz continua sendo um concurso autoritário, onde a prova oral e outras avaliações subjetivas visam deixar ingressar na carreira da Magistratura apenas pessoas conservadoras e, na maioria das vezes, com um pensamento autoritário. Pessoas que julgam com base na razão de Estado, na Constituição da Ditadura, AI5, etc. Pessoas que julgam contra os direitos da coletividade, os movimentos sociais, etc.

Isso explica a sentença de reintegração de posse da USP, a absolvição dos policiais e do Coronel Ubiratan, a absolvição dos policiais e demais oficiais que comandaram o massacre de Carajás, etc.

Isso também se aplica nos concursos da USP. Inclusive hoje, no concurso de seleção para Professor Titular da Faculdade de Direito da USP (Largo São Francisco) eu ouvi exatamente isso. Um dos Professores da banca lembrou que o candidato já tinha passado por outros membros da banca em outros concursos (doutorado, livre-docência) e que isso significava que todos se conheciam a um bom tempo, etc. Isso mostra que o concurso é uma máfia e que só vira Professor Titular da USP quem é integrante da máfia a um bom tempo. Novato não entra nem com reza braba. Certamente, existem as exceções, mas a regra é o corporativismo. E pior, chamam isso de mérito.

Não só isso, indica que o concurso, com esses critérios subjetivos, seleciona apenas aqueles que estão alinhados com o pensamento autoritário dos selecionadores. São velhos amigos. Defenderam juntos o regime militar, etc.

Essas pequenas máfias dentro da burocracia estatal perpetua o pensamento autoritário e impede a instalação da Democracia plena, assim como do Estado de Direito no Brasil. Não só isso, desvirtua completamente a administração pública que acaba se transformando em uma cadeia de apadrinhados. Lembrem da Carta do Pinotti pedindo vaga na Pós-Graduação da USP.

Por que você acha que os arquivos militares não são abertos no Brasil ? Por que o Presidente Lula não quer ou por ação das "Forças Ocultas" ?

Portanto, aqui na USP a ocupação está revelando quem são os filhotes da ditaduras, ou seja, quem são os burocratas autoritários que trabalham contra a coletividade, contra os movimentos sociais, contra a Democracia, contra o Estado de Direito e contra a autonomia da Universidade. Não estão só aqui na USP e no Judiciário, mas estão em toda a Administração Pública, principalmente em Brasília. Inclusive pode-se dizer que eles compõem a chamada "Forças Ocultas". Estão por baixo dos panos, conspirando contra os movimentos sociais, contra os líderes democráticos, contra a ocupação na USP, etc.

Esses indivíduos devem ser mapeados. Isso porque se quisermos construir uma Democracia, sem desigualdades sociais e um Estado de Direito efetivo teremos que arrancá-los de dentro da burocracia estatal. Não só eles, mas também seus herdeiros. A administração pública tem que ser depurada. Temos que fazer uma revolução cultural dentro da burocracia.

Olhe bem de perto para quem está chamando o choque para a ocupação. Veja os detalhes e analise suas carreiras. Você verá exatamente o que eu disse. Se ainda não acreditou cruze a vida e a formação dessas pessoas com a ditadura e você verá que a maioria delas passou ilesas pelo regime. Certamente, existem pontos fora da reta. Mas a exceção não é a regra.
Um novo "maio de 68" no campus da USP?

*Professor do Dept. de História/FFLCH/USP

Os professores precisam escolher se estão do lado da polícia ou dos estudantes.

28 de maio de 2007

Estudantes insatisfeitos ocupam universidade exigindo contratação de mais professores, construção de mais salas de aula e reformas na gestão universitária. A reitoria chama a polícia que desaloja violentamente os manifestantes.

Onde poderia se passar essa narrativa? Na USP destes dias?

Neste caso, tratava-se da Sorbonne, em Paris, ocupada pelos estudantes em 3 de maio de 1968. Depois que foram expulsos manu militari pelo ministro Alain Peyrefitte no dia seguinte já se sabe o resultado: uma explosão de fúria juvenil e estudantil, uma onda de barricadas e o despertar de uma inteira geração para o sonho de transformar a realidade com a indignação justa dos jovens que resolveram combater a injustiça do mundo.

Será este, de novo, o roteiro paulista e brasileiro de 2007? Começou uma "nova onda" na história do movimento estudantil brasileiro? Qual será o seu caráter, a sua amplitude e a sua profundidade?

O conteúdo das reivindicações, aparentemente apenas "acadêmicas", pode parecer tão semelhante e difuso como era o dos estudantes franceses no seu início: melhoria de condições de ensino, democratização da universidade, resistência a atitudes repressivas. A intervenção policial apenas radicalizou e ampliou a contestação, que passou a questionar diretamente o próprio governo. Independentemente do desfecho imediato do conflito que está fazendo da USP a referência para todo o movimento estudantil brasileiro, este outono paulista se assemelha a outras primaveras.

O espírito de rebelião estudantil, quase sempre, não é pontualmente acadêmico, nem estritamente apenas político, mas torna-se uma contestação global dos valores pelos quais se afirma uma ordem estabelecida.

Poderíamos esquematizar em três as vocações do movimento estudantil: uma corporativa e acadêmica (defesa de melhores condições de ensino e de vida para os estudantes, tais como moradia, alimentação, transporte, prédios, instalações); uma segunda, de ordem política (defesa de liberdades públicas, contra ditaduras, contra decretos governamentais); e ainda uma terceira que seria a cultural ou de costumes (liberdades individuais, como as de opção sexual ou de estilos de vida juvenis).

Defender com invasões de cinema o direito à meia-entrada seria da primeira vocação, assim como fazer greve pela contratação de mais professores ou bloqueios de rua pelo passe escolar no transporte, ou seja, a defesa das condições materiais e econômicas da vida dos estudantes. Exigir eleições diretas para presidente, a autonomia universitária ou a demissão de um secretário de estado já se tornam reivindicações diretamente políticas direcionadas a alterar uma política governamental ou mesmo a derrubar um governo. Direitos de escolher o cabelo ou o vestuário, a música, a prática sexual ou o uso de psicoativos se inscreveriam na terceira modalidade.

A forma como essas três dimensões se combinam na história dos movimentos estudantis é múltipla e sempre interligada. Em 1977, em São Paulo, a luta pelas condições de ensino logo se tornou defesa de presos políticos e desafio à ditadura. Em Sorocaba, em 1981, uma manifestação pelo direito ao beijo reúne milhares de estudantes que produzem um conflito político anti-ditatorial. Em 1968, na França, a questão dos dormitórios segregados sexualmente em Nanterre combinou-se com uma ocupação da Sorbonne por reivindicações materiais (contratação de professores e mais salas) e acadêmicas (alteração no sistema de avaliação) cujo desalojamento violento pela polícia desencadeou uma luta social de imensa profundidade. Em Seattle, em 1999, uma reunião de estudantes, grupos juvenis e o amplo espectro da esquerda desencadeou uma onda de "movimentos anti-globalização" que cercaram as reuniões dos órgãos oficiais da gestão dos negócios capitalistas com milhares de manifestantes em diversas cidades do mundo. Na Alemanha, em 1968, a morte de um estudante numa manifestação contra o Xá da Pérsia detonou a fúria estudantil. Em São Paulo, em 1986, pelo direito de exibir o filme de Godard Je vous salue Marie, proibido pelo governo Sarney, milhares de estudantes da PUC enfrentaram agentes federais que fugiram disparando tiros para o ar.

Atualmente, nesta luta, em 2007, dos estudantes das universidades paulistas, destacam-se, ao lado de reivindicações materiais a defesa política da causa da autonomia universitária. Mas a autonomia é vista, não como algo que diz respeito apenas aos estudantes, cientistas, professores e funcionários, mas como algo que imbui na essência da universidade um espírito público e um programa voltado para as maiorias socialmente desfavorecidas e, por isso, se choca com o projeto dos decretos de Serra de uma pesquisa "operacionalmente dirigida" e de uma universidade dominada por fundações que atendem interesses privados.

Se os estudantes fossem apenas os profissionais que se preparam para a competição nas funções técnicas e intelectuais especializadas da variedade das profissões, por que de quando em quando, acometeria aos jovens estudantes de todos os países uma vontade de transformar a vida e o mundo e de desencadear movimentos políticos estudantis que, de fato, mudam a história?

Isso ocorre porque os movimentos estudantis são como a consciência de uma geração que desperta e não aceita o mundo que lhe é legado, buscando com sua ação passar a ser sujeito do seu destino coletivo e não mais indivíduos passivos e concorrentes no lugar ao sol do êxito profissional. Ainda mais quando esse êxito é cada vez mais distante e inalcançável para a maioria dos diplomados devido ao desemprego estrutural de uma época de crise social e econômica.

Neste século XXI, num mundo em crise civilizacional, com o anúncio de uma catástrofe ecológica de aquecimento global para as próximas décadas, em meio a uma crise estrutural da economia planetária financeirizada, onde o desemprego é a perspectiva mais provável mesmo para os diplomados das melhores universidades e, especialmente num país em que as esperanças de mudança da geração anterior foram tão frustradas pela cooptação do PT e de Lula para o campo do "pensamento único" neoliberal e submisso aos ditames da hegemonia imperialista estadunidense, não é de se estranhar que esteja ocorrendo um movimento estudantil massivo e radicalizado.

Num espaço universitário com o brasileiro, em que nem sequer se exerce alguma forma de consulta democrática ampla e efetiva para a escolha dos reitores, e num país em que os processos eleitorais vem sendo corroídos por uma corrupção de reiterados escândalos de financiamentos ilícitos de campanhas, de manipulação midiática, de compra de votos e de mandatos por mensalões e troca-trocas partidários, é evidente que o conteúdo da democracia é formal e tão inautêntico como o era o liberalismo oitocentista dos fazendeiros escravistas. A juventude não está apenas apática, despolitizada e com asco pela política, mas está buscando outras formas mais diretas e mais autênticas de se aprender a fazer uma política democrática.

No início do século XX, a classe dominante formava seus filhos para gerirem os negócios familiares e do Estado. O bacharel de Direito era o emblema dessa sociedade. Novas profissões liberais como médicos e engenheiros ampliaram esse espectro, mas a grande mudança ocorre após os anos sessenta/setenta, quando uma enorme massa incorpora-se à universidade ampliando o tempo médio de escolaridade da população e respondendo à demanda de novas segmentações técnicas que a complexidade das novas tecnologias e mercados exigia.

A educação e, especialmente, a universidade tornam-se os grandes mecanismos de ascensão social das classes médias e mesmo de talentos individuais nas camadas desfavorecidas. Mas os estudantes não são apenas isso: a gênese de futuros profissionais graduados e pós-graduados nas diversas esferas técnicas e científicas hiper-especializadas indispensáveis para a divisão social do trabalho nos diversos setores da economia.

É o anúncio de uma nova geração que estamos assistindo e ouvindo. Como escreveu Walter Benjamin, em 1913, em A vida dos estudantes: "o estudantado seria visto assim em sua função criativa, como o grande transformador com a missão de converter em questões científicas, através de posicionamentos filosóficos, as idéias que costumam despertar antes na arte e na vida social do que na ciência. (...) Onde cargo e profissão constituem, na vida dos estudantes, a idéia dominante, esta não pode ser a ciência".

No entanto, notava o jovem Benjamin aos 22 anos, "a falsificação do espírito criador em espírito profissional, que vemos em ação por toda parte, apossou-se por inteiro da universidade e a isolou da vida intelectual criativa...".

A real busca de um saber crítico reside na vocação estudantil para extravasar os limites acadêmicos de seus currículos e buscar na prática da vida, da cultura e da política os caminhos para um aprendizado existencial que sempre incluiu, como elemento central, o espírito generoso da revolta contra o que é considerado injusto e incorreto.

Quando o famoso Instituto de Pesquisa Social, em Frankfurt, na Alemanha, foi ocupado por estudantes rebelados, em 31 de janeiro de 1969, o seu diretor e fundador, Theodor Adorno, chamou a polícia.

Em uma série de cartas, o seu amigo e colega Herbert Marcuse repreendeu-o e criticou-o severamente, dizendo de maneira clara que: "em determinadas situações, a ocupação de prédios e a interrupção de aulas são atos legítimos de protesto político (...) na medida em que a democracia burguesa (em virtude de suas antinomias imanentes) se fecha à transformação qualitativa, e isso através do próprio processo democrático-parlamentar, a oposição extraparlamentar torna-se a única forma de contestação: desobediência civil, ação direta".

Em outras destas cartas Marcuse expunha de forma clara, para o contexto alemão da época, a mesma disjuntiva que se coloca hoje para todo professor da USP, Unicamp e UNESP diante da atual crise das universidades paulistas: "Dito brutalmente: se a alternativa for polícia ou estudantes de esquerda, estou com os estudantes ? com uma exceção crucial, a saber, se a minha vida for ameaçada ou se for usada violência contra mim e os meus amigos e a ameaça for séria. Ocupações de salas (exceto a minha casa) sem esse tipo de ameaça violenta não é razão suficiente para se chamar a polícia (...) De fato, não se deve "caluniar abstratamente" a polícia. É evidente que em certas situações eu também chamaria a polícia. Em relação à universidade (e só em relação a ela) assim o formulei recentemente: se houver uma ameaça real de agressão física a pessoas e de destruição de materiais e equipamentos que servem à função educacional da universidade".

Se houver um crime, um estupro ou um assalto, seja nas nossas casas, como na universidade é lícito e, muitas vezes, indispensável, chamar a polícia. Mas, diante de um conflito político ou social, chamar a polícia sempre é uma forma violenta de defender o poder vigente. Especialmente a despreparada polícia de choque do governo Serra que recentemente demonstrou em plena praça da Sé lotada a sua disposição em dispersar multidões a tiros de balas de borracha, bombas e cassetadas.

No caso da USP, o movimento se caracteriza por ser absolutamente pacífico, nunca ter destruído qualquer material ou equipamento educacional, administrativo ou científico, nem ter ameaçado ninguém de violência física, ao contrário, a única ameaça de violência física provém da entrada de uma tropa de choque.
As posições opostas de Herbert Marcuse e de Theodor Adorno são os pólos éticos e políticos que novamente se confrontam entre o professorado no atual conflito desencadeado a partir da ocupação da reitoria da USP e de outras dependências da UNESP e UNICAMP e as alternativas são excludentes: estar com os estudantes ou estar com a polícia.
Um novo "maio de 68" no campus da USP?

*Professor do Dept. de História/FFLCH/USP

Os professores precisam escolher se estão do lado da polícia ou dos estudantes.

28 de maio de 2007

Estudantes insatisfeitos ocupam universidade exigindo contratação de mais professores, construção de mais salas de aula e reformas na gestão universitária. A reitoria chama a polícia que desaloja violentamente os manifestantes.

Onde poderia se passar essa narrativa? Na USP destes dias?

Neste caso, tratava-se da Sorbonne, em Paris, ocupada pelos estudantes em 3 de maio de 1968. Depois que foram expulsos manu militari pelo ministro Alain Peyrefitte no dia seguinte já se sabe o resultado: uma explosão de fúria juvenil e estudantil, uma onda de barricadas e o despertar de uma inteira geração para o sonho de transformar a realidade com a indignação justa dos jovens que resolveram combater a injustiça do mundo.

Será este, de novo, o roteiro paulista e brasileiro de 2007? Começou uma "nova onda" na história do movimento estudantil brasileiro? Qual será o seu caráter, a sua amplitude e a sua profundidade?

O conteúdo das reivindicações, aparentemente apenas "acadêmicas", pode parecer tão semelhante e difuso como era o dos estudantes franceses no seu início: melhoria de condições de ensino, democratização da universidade, resistência a atitudes repressivas. A intervenção policial apenas radicalizou e ampliou a contestação, que passou a questionar diretamente o próprio governo. Independentemente do desfecho imediato do conflito que está fazendo da USP a referência para todo o movimento estudantil brasileiro, este outono paulista se assemelha a outras primaveras.

O espírito de rebelião estudantil, quase sempre, não é pontualmente acadêmico, nem estritamente apenas político, mas torna-se uma contestação global dos valores pelos quais se afirma uma ordem estabelecida.

Poderíamos esquematizar em três as vocações do movimento estudantil: uma corporativa e acadêmica (defesa de melhores condições de ensino e de vida para os estudantes, tais como moradia, alimentação, transporte, prédios, instalações); uma segunda, de ordem política (defesa de liberdades públicas, contra ditaduras, contra decretos governamentais); e ainda uma terceira que seria a cultural ou de costumes (liberdades individuais, como as de opção sexual ou de estilos de vida juvenis).

Defender com invasões de cinema o direito à meia-entrada seria da primeira vocação, assim como fazer greve pela contratação de mais professores ou bloqueios de rua pelo passe escolar no transporte, ou seja, a defesa das condições materiais e econômicas da vida dos estudantes. Exigir eleições diretas para presidente, a autonomia universitária ou a demissão de um secretário de estado já se tornam reivindicações diretamente políticas direcionadas a alterar uma política governamental ou mesmo a derrubar um governo. Direitos de escolher o cabelo ou o vestuário, a música, a prática sexual ou o uso de psicoativos se inscreveriam na terceira modalidade.

A forma como essas três dimensões se combinam na história dos movimentos estudantis é múltipla e sempre interligada. Em 1977, em São Paulo, a luta pelas condições de ensino logo se tornou defesa de presos políticos e desafio à ditadura. Em Sorocaba, em 1981, uma manifestação pelo direito ao beijo reúne milhares de estudantes que produzem um conflito político anti-ditatorial. Em 1968, na França, a questão dos dormitórios segregados sexualmente em Nanterre combinou-se com uma ocupação da Sorbonne por reivindicações materiais (contratação de professores e mais salas) e acadêmicas (alteração no sistema de avaliação) cujo desalojamento violento pela polícia desencadeou uma luta social de imensa profundidade. Em Seattle, em 1999, uma reunião de estudantes, grupos juvenis e o amplo espectro da esquerda desencadeou uma onda de "movimentos anti-globalização" que cercaram as reuniões dos órgãos oficiais da gestão dos negócios capitalistas com milhares de manifestantes em diversas cidades do mundo. Na Alemanha, em 1968, a morte de um estudante numa manifestação contra o Xá da Pérsia detonou a fúria estudantil. Em São Paulo, em 1986, pelo direito de exibir o filme de Godard Je vous salue Marie, proibido pelo governo Sarney, milhares de estudantes da PUC enfrentaram agentes federais que fugiram disparando tiros para o ar.

Atualmente, nesta luta, em 2007, dos estudantes das universidades paulistas, destacam-se, ao lado de reivindicações materiais a defesa política da causa da autonomia universitária. Mas a autonomia é vista, não como algo que diz respeito apenas aos estudantes, cientistas, professores e funcionários, mas como algo que imbui na essência da universidade um espírito público e um programa voltado para as maiorias socialmente desfavorecidas e, por isso, se choca com o projeto dos decretos de Serra de uma pesquisa "operacionalmente dirigida" e de uma universidade dominada por fundações que atendem interesses privados.

Se os estudantes fossem apenas os profissionais que se preparam para a competição nas funções técnicas e intelectuais especializadas da variedade das profissões, por que de quando em quando, acometeria aos jovens estudantes de todos os países uma vontade de transformar a vida e o mundo e de desencadear movimentos políticos estudantis que, de fato, mudam a história?

Isso ocorre porque os movimentos estudantis são como a consciência de uma geração que desperta e não aceita o mundo que lhe é legado, buscando com sua ação passar a ser sujeito do seu destino coletivo e não mais indivíduos passivos e concorrentes no lugar ao sol do êxito profissional. Ainda mais quando esse êxito é cada vez mais distante e inalcançável para a maioria dos diplomados devido ao desemprego estrutural de uma época de crise social e econômica.

Neste século XXI, num mundo em crise civilizacional, com o anúncio de uma catástrofe ecológica de aquecimento global para as próximas décadas, em meio a uma crise estrutural da economia planetária financeirizada, onde o desemprego é a perspectiva mais provável mesmo para os diplomados das melhores universidades e, especialmente num país em que as esperanças de mudança da geração anterior foram tão frustradas pela cooptação do PT e de Lula para o campo do "pensamento único" neoliberal e submisso aos ditames da hegemonia imperialista estadunidense, não é de se estranhar que esteja ocorrendo um movimento estudantil massivo e radicalizado.

Num espaço universitário com o brasileiro, em que nem sequer se exerce alguma forma de consulta democrática ampla e efetiva para a escolha dos reitores, e num país em que os processos eleitorais vem sendo corroídos por uma corrupção de reiterados escândalos de financiamentos ilícitos de campanhas, de manipulação midiática, de compra de votos e de mandatos por mensalões e troca-trocas partidários, é evidente que o conteúdo da democracia é formal e tão inautêntico como o era o liberalismo oitocentista dos fazendeiros escravistas. A juventude não está apenas apática, despolitizada e com asco pela política, mas está buscando outras formas mais diretas e mais autênticas de se aprender a fazer uma política democrática.

No início do século XX, a classe dominante formava seus filhos para gerirem os negócios familiares e do Estado. O bacharel de Direito era o emblema dessa sociedade. Novas profissões liberais como médicos e engenheiros ampliaram esse espectro, mas a grande mudança ocorre após os anos sessenta/setenta, quando uma enorme massa incorpora-se à universidade ampliando o tempo médio de escolaridade da população e respondendo à demanda de novas segmentações técnicas que a complexidade das novas tecnologias e mercados exigia.

A educação e, especialmente, a universidade tornam-se os grandes mecanismos de ascensão social das classes médias e mesmo de talentos individuais nas camadas desfavorecidas. Mas os estudantes não são apenas isso: a gênese de futuros profissionais graduados e pós-graduados nas diversas esferas técnicas e científicas hiper-especializadas indispensáveis para a divisão social do trabalho nos diversos setores da economia.

É o anúncio de uma nova geração que estamos assistindo e ouvindo. Como escreveu Walter Benjamin, em 1913, em A vida dos estudantes: "o estudantado seria visto assim em sua função criativa, como o grande transformador com a missão de converter em questões científicas, através de posicionamentos filosóficos, as idéias que costumam despertar antes na arte e na vida social do que na ciência. (...) Onde cargo e profissão constituem, na vida dos estudantes, a idéia dominante, esta não pode ser a ciência".

No entanto, notava o jovem Benjamin aos 22 anos, "a falsificação do espírito criador em espírito profissional, que vemos em ação por toda parte, apossou-se por inteiro da universidade e a isolou da vida intelectual criativa...".

A real busca de um saber crítico reside na vocação estudantil para extravasar os limites acadêmicos de seus currículos e buscar na prática da vida, da cultura e da política os caminhos para um aprendizado existencial que sempre incluiu, como elemento central, o espírito generoso da revolta contra o que é considerado injusto e incorreto.

Quando o famoso Instituto de Pesquisa Social, em Frankfurt, na Alemanha, foi ocupado por estudantes rebelados, em 31 de janeiro de 1969, o seu diretor e fundador, Theodor Adorno, chamou a polícia.

Em uma série de cartas, o seu amigo e colega Herbert Marcuse repreendeu-o e criticou-o severamente, dizendo de maneira clara que: "em determinadas situações, a ocupação de prédios e a interrupção de aulas são atos legítimos de protesto político (...) na medida em que a democracia burguesa (em virtude de suas antinomias imanentes) se fecha à transformação qualitativa, e isso através do próprio processo democrático-parlamentar, a oposição extraparlamentar torna-se a única forma de contestação: desobediência civil, ação direta".

Em outras destas cartas Marcuse expunha de forma clara, para o contexto alemão da época, a mesma disjuntiva que se coloca hoje para todo professor da USP, Unicamp e UNESP diante da atual crise das universidades paulistas: "Dito brutalmente: se a alternativa for polícia ou estudantes de esquerda, estou com os estudantes ? com uma exceção crucial, a saber, se a minha vida for ameaçada ou se for usada violência contra mim e os meus amigos e a ameaça for séria. Ocupações de salas (exceto a minha casa) sem esse tipo de ameaça violenta não é razão suficiente para se chamar a polícia (...) De fato, não se deve "caluniar abstratamente" a polícia. É evidente que em certas situações eu também chamaria a polícia. Em relação à universidade (e só em relação a ela) assim o formulei recentemente: se houver uma ameaça real de agressão física a pessoas e de destruição de materiais e equipamentos que servem à função educacional da universidade".

Se houver um crime, um estupro ou um assalto, seja nas nossas casas, como na universidade é lícito e, muitas vezes, indispensável, chamar a polícia. Mas, diante de um conflito político ou social, chamar a polícia sempre é uma forma violenta de defender o poder vigente. Especialmente a despreparada polícia de choque do governo Serra que recentemente demonstrou em plena praça da Sé lotada a sua disposição em dispersar multidões a tiros de balas de borracha, bombas e cassetadas.

No caso da USP, o movimento se caracteriza por ser absolutamente pacífico, nunca ter destruído qualquer material ou equipamento educacional, administrativo ou científico, nem ter ameaçado ninguém de violência física, ao contrário, a única ameaça de violência física provém da entrada de uma tropa de choque.
As posições opostas de Herbert Marcuse e de Theodor Adorno são os pólos éticos e políticos que novamente se confrontam entre o professorado no atual conflito desencadeado a partir da ocupação da reitoria da USP e de outras dependências da UNESP e UNICAMP e as alternativas são excludentes: estar com os estudantes ou estar com a polícia.

domingo, 27 de maio de 2007

Ocupação da reitoria da USP - A lucidez de um Físico da USP - Prof. Schenberg

Não se faz mais Físicos como antigamente. Os Físicos de hoje, principalmente da USP, são alienados e comprometidos com o poder econômico. Não enxergam um palmo na frente do nariz e são especialistas no arremesso de cadeira. Deveriam rever as lições do Professor Schenberg.
Texto completo: http://http://xoomer.alice.it/direitousp/mario.htm

MARIO SCHENBERG: "A Física é uma arte"

Amélia Império Hamburger

Vol. 3 N. 13 Ciência Hoje - 1984

Professor Schenberg poderia falar sobre suas aulas, sobre o que valoriza no ensino de Física e na interação com os alunos?

Para começar, eu gostaria de dizer alguma coisa sobre minhas tendências de comportamento. Antes de tudo, sou pessoa de tendências intuitivas e não de muitos raciocínios. Assim, me comporto de acordo com o que a intuição me sugere. Posso ter preparado uma aula de acordo com uma idéia e, ao chegar na sala, mudar completamente.

Também não gosto muito de separar as coisas da vida. A vida não se separa em ciência, atividade política, atividade filosófica: a vida é uma coisa só, naturalmente marcada pela personalidade da pessoa, que se manifesta em tudo o que faz.

Eu tenho tendência a ter uma personalidade intuitiva. Quando a gente se prepara muito, deixa de ser verdadeiro consigo mesmo, fica meio fingido, e dificulta o contato com as outras pessoas. Uma aula muito bem preparada, escrita, completa, é uma aula ruim, porque é uma coisa morta, não tem a vivacidade do que está sendo criado no momento em que se diz.

O principal não é transmitir aos alunos um grande cabedal de conhecimentos, mas comunicar certos pontos de vista. Sempre me guiei por isso, pela sinceridade em tudo o que se fizer, não ser pedante, não ter excessivas preocupações lógicas e com a coerência. Para muitos parece desorganizado, mas acho que essa maneira de agir penetra mais no espírito do aluno que as aulas muito bem preparadas. Muitas vezes uma aula difícil faz o aluno pensar e pode lhe sugerir algo até anos depois.

Este amor à informalidade não é tão original. O famoso matemático e físico alemão Herman Weil dizia ter aprendido mais matemática conversando com David Hilbert, o maior matemático de seu tempo, durante os passeios que faziam pelos bosques, do que nas salas de aula, em Gottingen. Aliás, a primeira pessoa que teve forte influência sobre mim, o professor Luís Freire da Escola de Engenharia do Recife, pai do senador Marcos Freire, também me ensinou muito desse modo, nas conversas informais em sua casa.

Acho que assim se estabelece um contato mais livre, e por isso mesmo mais profundo, entre professor e aluno, onde este aproveita muito mais.

Como o senhor vê a Universidade de agora em comparação com a de outros tempos?

A meu ver, a Universidade brasileira antigamente era melhor do que a de agora. Por exemplo, pela diferença no modo de encarar o ensino. Naturalmente, havia pessoas preocupadas em dar aulas levando em conta a didática, mas havia uma certa intuição na Universidade de que o importante não era tanto transmitir conhecimento mas estimular a criatividade do aluno. De certa forma, havia uma tendência ao informalismo dentro da Universidade, que depois desapareceu, principalmente com a Reforma Universitária. Pode ser que algumas pessoas ainda o conservem, mas minha impressão é que isso desapareceu.

Outra coisa diferente é que naquele tempo as pessoas não se impunham objetivos determinados de fazer teses, mestrado, doutoramentos, o que praticamente se tornou o centro das preocupações da Universidade. A pessoa não se propõe a fazer uma pesquisa cientifica, procura fazer uma tese. Essas teses só têm valor formativo se representarem uma pesquisa científica real. A própria pessoa, pelas dificuldades que deve superar na pesquisa, vai se desenvolvendo como cientista. Hoje, sendo uma coisa meio formal, isso não acontece. Antigamente não era assim: a única tese que fiz foi para o concurso de catedrático.

Hoje se obriga a pessoa a publicar muito, a publicar demais. O critério para julgamento da eficiência científica de uma pessoa é o número de publicações, o que é uma coisa inteiramente absurda. Há inúmeros trabalhos publicados que ficaram inteiramente desconhecidos. Um exemplo curioso é o de Bunsen, químico alemão que publicou mais de quinhentos trabalhos: embora tenha ajudado muito Kirchhoff a fundar a espectroscopia, é hoje conhecido apenas pelo bico de Bunsen, o bico de gás rotineiro nos laboratórios.

Por outro lado, há pessoas que ficaram famosas com uma única publicação, como por exemplo o físico indiano Bose. A história é curiosa, pois Bose escreveu um trabalhinho de meia página e mandou para o Philosophical Magazine. Como o trabalho foi recusado, Bose mandou-o a Einstein, que o publicou, sem consultá-lo, no Annalender Physik. Nesse pequeno trabalho de meia página, descreve-se pela primeira vez uma família de partículas, chamadas bósons em sua homenagem, além de outras coisas importantes.

Essa preocupação de ter um grande número de trabalhos publicados às vezes pode prejudicar as pessoas, se é que não prejudica sempre, pois a pessoa fica naquela tensão de ter que estar sempre publicando coisas novas sem tempo para se concentrar bastante em uma determinada coisa.

Seria uma questão de ir em profundidade no trabalho?

Não é somente questão de ir em profundidade num trabalho, mas de perseguir um destino também. Acho que existe alguma coisa que está além da vontade da pessoa. A pessoa não faz um trabalho profundo e original porque queira fazer um trabalho profundo e original. Faz porque faz, e às vezes nem se dá conta de que está fazendo um trabalho profundo e original. Outros é que vão se dar conta disso, às vezes até muitos anos depois da morte da pessoa. Acho que há um destino, acredito nisso. Toda a minha carreira de físico, por exemplo, se definiu por volta dos treze anos de idade, quando estudei pela primeira vez Física e geometria.

A geometria me causou um impacto muito grande, quando vi que as impressões sensoriais, as formas, aquilo que se vê com os olhos, podiam ser transformadas em uma estrutura lógica, matemática. Ao mesmo tempo, comecei a estudar Física e vi que todos os fenômenos da natureza eram regidos por leis matemáticas. Mais tarde eu seria levado a pensar que toda a Física era, no fundo, uma geometria.

O interessante que, antes dessa idade, eu tinha estudado matemática e não tinha gostado de nada, nem de aritmética, nem de álgebra. Não era bom aluno. Em geometria, fui pela primeira vez bom aluno em matemática, porque aquilo me tocou profundamente, despertou em mim alguma coisa, era um destino.

A obrigação de fazer teses e todas essas coisas pode estar afastando as pessoas de seu destino, impelindo-as em direções que não são as delas. Tenho a impressão de que a educação não deve ser nunca uma carga para a pessoa: deve ser uma coisa estimulante, dando bastante liberdade ao aluno. Einstein, por exemplo, ficou com ódio até da própria Alemanha por causa do ginásio alemão, que era tão opressivo. Fez todas as coisas sozinho, e não foi bom aluno: não assistia às aulas, e procurava respeitar muito sua própria personalidade, suas intuições. Não era preocupação dele estar muito bem informado sobre as idéias dos outros, ou documentar essas idéias. Procurava desenvolver as que tinha e, se fossem as mesmas, ótimo, não tinha importância.

O sistema atual não visa estimular a criatividade do aluno, mas sim a sua produção. Aliás, tive uma experiência interessante quando estive nos Estados Unidos em 1940, trabalhando com o professor George Gamow. Era um russo de formação européia, tinha horror à Universidade norte-americana, e me preveniu: não vá muito à universidade daqui, não é recomendável, pois a pessoa é promovida pelo ?peso? de suas publicações, e não pelo seu peso científico. Achava que isso se devia ao fato de serem, em geral, universidades particulares, e que os boards of trustees, formados por homens de negócio, cultivavam a idéia de produção sem pensar na qualidade.

O critério para promoção, para a renovação de contrato, era o número de trabalhos. Esse critério quantitativo foi introduzido no Brasil pela Reforma Universitária que, como se sabe, é conseqüência do acordo MEC-USAID. Um físico americano famoso fez uma defesa da universidade dos EUA dizendo que o país tinha necessidade de formar 50.000 engenheiros por ano, não necessariamente os melhores do mundo, para manter o desenvolvimento industrial. Quando queriam alguém de grande capacidade, contratavam na Inglaterra, onde a organização universitária permitia formar, por ano, os duzentos melhores engenheiros do mundo.

Essa era a Filosofia dominante: aplicavam no ensino os métodos industriais. Esse sistema foi transplantado para cá, fazendo tábua rasa de toda uma tradição universitária brasileira que já existia e que talvez fosse mais adaptada ao Brasil do que aquela que foi instituída.

Estou convencido de que a Universidade de hoje é uma instituição em vias de desaparecer. Ou então será uma coisa inteiramente diferente. Terá que ser reformulada, repensada, certos objetivos deverão ser redefinidos.

O senhor tem sentido esse problema em seus contatos com alunos da Universidade brasileira?

Hoje, há alunos de pós-graduação que não sabem coisas elementares. Depois de um curso de mecânica estatística que dei agora, constatei no exame oral que um aluno não sabia o que era vapor, que vapor não é um gás. Mas isso é coisa que já se deveria saber desde o ginásio! Pelo menos no meu tempo era assim. As coisas mais elementares é que devem ser bem sabidas. Talvez os alunos tenham um conhecimento puramente operacional dessas coisas, passando a estudar coisas mais sofisticadas. Acho isso muito curioso. Não consigo formar uma idéia geral do ensino hoje em dia, mas sei que não se pode dizer que a Universidade esteja funcionando bem.

Mário, gostaríamos que contasse fatos de sua infância, de como se estabeleceu sua reação com a arte, de como foi se orientando para a Física.

Nasci no Recife, mas não fiquei muito tempo por lá. Por várias vezes passei longas temporadas no Rio de Janeiro onde a família vinha freqüentemente; minha mãe me contava que aos dois anos peguei a gripe espanhola no Rio de Janeiro. Em 1930, passei o ano todo no Rio para fazer o exame vestibular. Eu queria estudar na Europa mas não deu, não tive condições financeiras para isso. Voltei para o Recife e entrei para a Escola de Engenharia de lá.

Uma das coisas mais interessantes de minha infância foi como entrei em relação com a arte. Aconteceu quando eu tinha oito anos e fui com minha família para Paris e outros lugares da Europa. Principalmente em Paris, não sei por quê, as catedrais góticas me impressionaram muito. Até consegui que meu pai me comprasse um visor binocular, espécie de slides, e depois da volta ao Brasil, durante muito tempo, ficava olhando aquelas catedrais góticas no aparelhinho. Foi um coisa que me marcou muito, esse encontro com a arte aos oito anos de idade, muito antes de encontrar a ciência. Na volta dessa viagem, quando o navio parou em Portugal, meu pai desceu de bordo e perguntou o que eu queria que ele trouxesse. Pedi um livro de história universal, e ele me trouxe o livro de Raposo Botelho, horrível, cheio de datas, nomes de reis e batalhas. Não sei como, mas li aquilo como se fosse uma delícia. Quando cheguei ao Brasil já tinha lido o livro todo. Começou aí esse meu interesse pela história, que é também antigo e nasceu em relação com a arte. E as duas se conservaram ligadas, mesmo depois.

O interesse pela ciência veio mais tarde, aos dez anos: comecei me interessando pela tecnologia, lia uns livrinhos, em francês, sobre aviões, navios, motores. O fonógrafo me impressionava multo. Na minha infância o contato com a tecnologia era muito reduzido, mesmo o automóvel era ainda bastante raro. O vôo de travessia do Atlântico pelo Sacadura Cabral me entusiasmou, mas ainda não tinha idéia do que fosse ciência: só fui estudar Física, química e história natural no último ano do ginásio.

Esse foi um ano de grandes impactos ideológicos. Além do contato com a geometria, foi também o ano em que tomei conhecimento pela primeira vez das idéias marxistas, através da revista Cultura, publicada pelo Francisco Mangabeira, filho de João Mangabeira. Foi um tempo muito fecundo da minha vida, em que muitas coisas se juntaram e interagiram.

Eu poderia ter me tornado um artista, mas isso não aconteceu, talvez pela estupidez dos cursos de desenho, onde se punha um jarro no meio da sala de aula e tínhamos que copiá-lo. Eu, que desenhava muito, coisas da minha imaginação, não gostava de ficar copiando detalhes. Fiquei então com o complexo de que não sabia desenhar. Só com trinta anos voltei a fazê-lo e vi que não era tão sem jeito quanto supunha.

E como começou sua carreira de físico?

Eu não fui para a carreira de físico, e nem havia carreira de físico no Brasil daquele tempo. Fui para a Escola de Engenharia, como todo mundo que tinha gosto por Física ou matemática, assim como quem gostava de biologia ia para a Faculdade de Medicina. Naquela época já gostava de matemática e de Física. Fiz os dois primeiros anos em Recife e depois, no terceiro, me transferi para São Paulo. No ano seguinte, criaram a Faculdade de Filosofia, com os Departamentos de Física e de Matemática, e entrei para o curso de matemática. Na época, não havia praticamente diferença entre os cursos de matemática e de Física. Formei-me engenheiro eletricista em 1935 e bacharel em matemática no ano seguinte. Logo depois fiquei trabalhando, contratado como assistente, com o professor Wataghin, trazido para fundar o Departamento de Física da Faculdade de Filosofia da USP.

No último ano da Escola de Engenharia, eu já tinha feito um trabalho de Física teórica sobre as interações dos elétrons, uma aplicação da eletrodinâmica quântica. Esse trabalho foi publicado na revista italiana Nuovo Cimento ainda em 1936. No tempo de estudante eu tinha feito um trabalhinho sobre Princípios da Mecânica, de que só publiquei a primeira parte, a Introdução, na Revista do Grêmio Politécnico. A segunda parte nunca cheguei a publicar. Já formado, fiz alguns trabalhos de Física experimental com o professor Occhialini, também na USP, sobre raios cósmicos.

Que contatos foram significativos para o desenvolvimento de seu trabalho em Física?

Aqui no Brasil esses contatos com Wataghin e Occhialini foram muito estimulantes. Pouco depois, em 1938, comissionado pelo Governo do Estado de São Paulo, fui para a Itália. Occhialini voltava para lá, em férias. Viajamos juntos, e no navio fizemos um trabalho experimental sobre a variação da intensidade dos ?showers? de raios cósmicos com a latitude. Voltei a trabalhar com ele, mais tarde, ligado a um grupo de Física experimental, na Bélgica. Em Roma, trabalhei com Enrico Fermi. Publiquei dois trabalhos sobre as funções singulares da eletrodinâmica quântica, que saíram na revista Physica.

Publiquei depois um trabalho mais completo no Journal de Pbysique et du Radium. Fiz um trabalho interessante sobre a origem dos raios cósmicos a partir dos mésons, partículas altamente ionizantes, e não elétrons e fótons, como se pensava na época. Fermi não acreditou nisso, e eu só redigi o trabalho aqui, publicando-o nos Anais da Academia Brasileira de Ciências. Mas o trabalho está citado no livro de Heisenberg sobre raios cósmicos.

Depois de Fermi sair da Itália, fui para Zurique, onde trabalhei com o professor Pauli. Encontrei Pauli várias vezes mais tarde, em Princeton em 1941, e depois da guerra, em Zurique, onde ele ensinava. Tivemos contatos freqüentes, que me influenciaram muito, não só do ponto de vista da Física. Eu que já tinha interesse pela filosofia oriental, fui estimulado por ele em muitas conversas sobre esse assunto.

De Zurique, como a guerra estava para arrebentar, fui para a Bélgica, perto de um porto de mar onde pudesse tomar um navio de volta. Passei antes por Paris onde encontrei Bruno Ponte-corvo, a quem me haviam recomendado na Itália Ele me apresentou a Frédéric Joliot e passei alguns meses no Collège de France onde dei seminários e conheci Paul Langevin.

Da Antuérpia peguei um navio do Lloyd Brasileiro. Era abril, e as tropas alemãs entravam em Praga. A guerra começou em setembro, quando os alemães invadiram Varsóvia.

Foi um período interessante. Gostei muito da Itália, onde me identifiquei com o povo e vi muita coisa sobre arte. Foi quando comecei a me interessar de novo pela arte. Em Paris conheci Di Cavalcanti que tinha um atelier junto com Di Chirico.

Foi muito interessante fazer essa viagem à Europa, antes da guerra. Paris antes da guerra era outra coisa. Foi um mundo que ainda pude conhecer e que desapareceu.

E o senhor voltou para lá depois da guerra?

Voltei em 1948, 49. Durante a guerra fui para os Estados Unidos, com bolsa da Fundação Guggenheim que pela primeira vez dava bolsas para o Brasil. Também recebeu essa bolsa Maurício Rocha e Silva. Fui para Washington onde estava Gamow, que eu já conhecia do Brasil. Gamow estava interessado em elucidar a possibilidade de colapso das supernovas. Poucos dias depois de ter chegado a Washington, comecei a estudar os cálculos de mecânica estatística e vi que não levavam em conta a existência do neutrino.

A idéia da existência do neutrino era recente, tinha sido sugerida por Pauli e por Fermi. A energia era consumida no centro das estrelas com a emissão de neutrinos, e se dava com uma rapidez tão grande quanto a do desaparecimento do dinheiro na mesa de roleta do cassino da Urca. Daí Gamow ter chamado o fenômeno de processo Urca. Esse foi um período bom em que tive muitas idéias.

Fui depois para Princeton, como membro do lnstitute for Advanced Studies, onde passei quatro meses com muita gente boa. Além de Pauli e Einstein, Feymann, que fazia tese, Wheeler, von Neuman, e Chandrasekhar. Trabalhei com Pauli em questões de relatividade geral, publiquei duas notas no Physical Review, uma chamando a atenção para o momento angular do campo gravitacional, pela primeira vez, e outra, um trabalho já começado no Brasil, sobre interações nucleares que não conservariam a paridade. Quando saiu esse resultado, Pauli não quis acreditar nele. Isso muitos anos antes da descoberta de Yang e Lee, que não conheciam meu trabalho. Sakata, num Congresso no Japão em 1965 mencionou esse trabalho.

Ainda em 1941 trabalhei com Chandrasekhar, no Observatório de Yerkes, sobre problemas da evolução do Sol, tendo estabelecido o "Limite de Chandrasekhar-Schenberg?. Esse resultado é importante em astroFísica e vale até hoje. Em 1942, se ficasse nos Estados Unidos teria que me alistar.

Fui convidado para ficar trabalhando na Universidade de Chicago. Acho que foi um erro voltar para o Brasil naquele momento. Voltei para fazer concurso e como demorou até 1944, fui ficando no Brasil. Trabalhei então em teoria eletromagnética, principalmente em questões ligadas ao elétron puntiforme. Em 1948 voltei à Europa para o Primeiro Congresso Mundial de Intelectuais pela Paz, depois de ter sido, em 1947, cassado do mandato de deputado e mantido
preso por dois meses.

Fiquei até 1953 na Universidade de Bruxelas, no Centro de Pesquisas Nucleares. Fiz vários trabalhos em mecânica estatística e teoria quântica, publicados no Nuovo Cimento, e que foram aproveitados em vários ramos da fisico-quimica Além desses trabalhos fiz uma reformulação da mecânica estatística clássica, construída a partir da mecânica de Newton. Mostrava que a indistinguibilidade entre partículas não é conseqüência da teoria quântica, mas está contida na teoria clássica. É uma questão de simetria Eu acho que esses trabalhos de Bruxelas são muito importantes.

Ao voltar, o senhor se viu comprometido com a implantação do ensino e da pesquisa em Física em São Paulo...

Nessa época, o Marcelo Damy era o diretor do departamento de Física. O Paulus Pompéia também foi diretor. Primeiro a Física funcionou na sede da Politécnica, na rua Três Rios, depois foi para uma casa velha na rua Tiradentes, e mais tarde para a avenida Brigadeiro, depois para a Maria Antônia e, finalmente, passamos para a Cidade Universitária. Nunca quis exercer cargos administrativos; só aceitei após ter voltado da segunda viagem à Europa, já em 1953. Aí fiquei como diretor do Departamento de Física até 1961.

Contribui para fazer várias modificações, e fui muito auxiliado pelo reitor, doutor Ulhoa Cintra. Sem a sua ajuda não conseguiríamos fundar o laboratório de Física do Estado Sólido, e isso foi importante. Todo o pessoal do departamento ia só para a Física nuclear, mas eu tinha uma divergência de opinião muito grande, tecnológica, com o pessoal do departamento de Física. Eles achavam que ia haver um revolução industrial, e que essa revolução ia ter por base a energia nuclear. Eu achava que vinha realmente uma revolução industrial, mas não baseada na energia nuclear, e sim na informática, na eletrônica.

Por isso, achava que se tinha que desenvolver a Física do estado sólido. Ninguém no Brasil entendia disso. Já havia alguns grupos, como os liderados por Bernard Gross e Joaquim Costa Ribeiro, mas eram grupos pequenos. Tentaram também iniciar um trabalho em São José dos Campos, mas não deu certo.

O nosso programa foi feito com recursos maiores, de origem federal. Quem me ajudou muito foi o então deputado Ulysses Guimarães. Enquanto todo mundo achava que o futuro seria a Física nuclear, eu não só incentivei a Física do estado sólido, como fiz o reitor, doutor Ulhoa Cintra, comprar o primeiro computador aqui da USP, um IBM. Mas precisei enfrentar uma oposição forte. Até os professores Oscar Sala e Carlos Gomes tentaram me dissuadir da idéia de comprar um computador. Diziam que em Boston não havia..

Os físicos eram contra os computadores; não enxergavam que eles iam revolucionar a ciência. E como ocorreu a respeito da política nuclear brasileira. No começo, você contava nos dedos quantos estavam realmente contra: um desastre econômico, e o pessoal não se dava conta disso. Os físicos brasileiros não têm muita intuição no que diz respeito ao sentido em que a tecnologia se desenvolve. Há uma falta de senso de realidade econômica, por erro de formação.

Em relação à energia nuclear, isso foi claro: não há dúvida de que o reator nuclear não pode competir de modo nenhum com a energia hidrelétrica. O cálculo do potencial hidrelétrico que as pessoas faziam era absurdo. A energia nuclear poderia competir com a energia da queima do petróleo, mas não com a hidrelétrica. Confundiram as coisas, achando que a energia nuclear sairia mais barata que a hidrelétrica.

Os físicos achavam que era na área da Física nuclear que iria ocorrer uma nova revolução industrial, e que as outras áreas eram teóricas. Não compreendiam que os raios cósmicos foram a primeira fonte de partículas de alta energia ? só depois é que vieram os aceleradores ? e neles estava a questão da estrutura da matéria Era falta de Intuição sobre os caminhos que a Física iria seguir. A Física nuclear ficou sendo um ramo secundário, e só escaparia disso se se tornasse tecnologicamente importante. Importante era a Física das partículas elementares, e não a Física nuclear propriamente dita. Os fundadores da Física experimental no Brasil viram as coisas com certas limitações, sem muita amplitude. Ficaram fascinados com a energia nuclear.

Professor Schenherg, o senhor considera os chamados fenômenos paranormais como pertencentes à mesma realidade que os fenômenos físicos. Como é essa sua concepção?

Um dos pontos que ainda não pude realizar ? e espero ainda poder fazê-lo? é a fusão da biologia com a Física. O grande problema que está diante da Física é o problema da vida. A mecânica quântica conseguiu fundir a química com a Física, e só depois dela foi possível explicar a valência química. A fronteira da Física ficou então na biologia, e o problema é como fundir essas duas ciências. Eu acho que entre a Física e a biologia está a parapsicologia. Não a parapsicologia pensada em termos de espiritismo. Aliás, o próprio nome ?parapsicologia?é ruim, porque dá a entender coisas que estão além da psicologia. Seria melhor ?parafisica?, o que vem logo depois da Física.

Veja só; Einstein não gostava da mecânica quântica porque achava que ia levar à parapsicologia. Que intuição! Mas ele não pensava em termos gerais da ciência, coisa que Heisenberg já fez: Heisenberg pensava em fundir a biologia e a Física. O que é fundamental na biologia? Qual a característica essencial da vida? Os biólogos não respondem a isso. Eu acho que são as propriedades parapsicológicas. Einstein compreendeu, desde 1927, que a mecânica quântica está beirando a parapsicologia. Mostrou que a matéria tem propriedades como que parapsicológicas. o que na verdade é um outro relacionamento com o espaço e o tempo: não é o da Física clássica, mas o da mecânica quântica. E essa fusão entre a biologia e a Física talvez nem se dê pela mecânica quântica, talvez seja pela mecânica clássica mesmo.

Para Heisenberg, a união da Física e da biologia se dá porque o fenômeno típico da vida é haver uma história. Por que não haver certa historicidade na Física? Essa era a idéia dele. Pode haver outras. É preciso uma certa sensibilidade para o desconhecido; o cientista tem que estar sempre à beira do desconhecido.

O cientista não é o homem que está no conhecido ? este é o tecnólogo. E o que está à beira do desconhecido é o problema da vida. Essa e outras questões talvez estejam ligadas à impropriamente chamada parapsicologia e tenham mais a ver com a Física mesmo. Esta pode ser uma das grandes mudanças do pensamento humano, um grande salto. A formação do cientista deve criar na pessoa uma atitude de abertura para o desconhecido. Precisa-se criar um faro para o desconhecido, no sentido de se suspeitar das coisas. Einstein era assim, a percepção dele era muito forte.

A idéia de paraFísica tem ligação com seu trabalho em Bruxelas ?

Em Bruxelas eu procurei mostrar que, dentro da mecânica de Newton, você podia fazer uma teoria das partículas indistinguíveis, necessária para uma termodinâmica correta, a fim de evitar o chamado paradoxo de Gibbs. Achavam que isso só tinha a ver com a mecânica quântica, com o princípio de Pauli, mas mostrei que não era assim. Foi o melhor trabalho que já fiz, liga-se com a equação diferencial de Liouville na mecânica estatística. Os artigos estão publicados no Nuovo Cimento.

Mas chegou um momento em que fiquei assustado, porque apareceram coisas estranhas, e eu não entendi: parecia que podiam acontecer fenômenos físicos que não tinham localização espacial. Mas eram teorias matemáticas. Ficou um enigma. Quem gostou foi o professor De Groot, da Alemanha. Ele me disse que fiz um aperfeiçoamento da teoria de Newton numa direção que não se supunha possível. Agora, recentemente, saiu um livro na Holanda, do físico canadense R. Paul que descobriu que, em muitos ramos da fisico-química, podem ser aplicados métodos da mecânica quântica, sem que sejam questões de mecânica quântica. E era realmente isso que eu tinha feito. Em muitas questões da Física clássica, podia-se aplicar métodos que pareciam ser da mecânica quântica, mas não eram, que então podiam ser aplicados à mecânica newtoniana.

Por ocasião desse meu trabalho, eu nem havia ainda ouvido falar em parapsicologia. Foi só há dez anos atrás que, lendo sobre fenômenos parapsicológicos, liguei as coisas, ou seja, os fenômenos não localizados no espaço. E esses fenômenos não precisam ser quânticos, podem ser clássicos. Assim que puder, vou retomar essas questões. Talvez sejam fenômenos que tenham a ver com a telepatia, porque é certo que a telepatia tem alguma coisa a ver com a Física. Só que não foi através da Física que tomei contato com a telepatia, mas através da arte. A arte está bastante ligada às coisas parapsicológicas. É possível que todo fenômeno artístico seja um fenômeno parapsicológico, ou envolva esse fenômeno.

E seus trabalhos mais recentes?

Desde 1965 comecei a trabalhar em problemas da gravitação. Publiquei, na Revista Brasileira de Física, em 1971, e na Acta Physica Austriaca, em 1973, dois artigos em que faço uma reinterpretação da teoria da relatividade geral como uma teoria da causalidade, em que o campo gravitacional seria um campo de causalidade. Assim, toda a geometria do espaço-tempo fica baseada na causalidade.

Na Revista Brasileira de Física, em 1977, publiquei um artigo sobre isso. E um tratamento mais primário do problema do espaço, em nível pré-geométrico, sem levar em conta a existência de uma métrica riemanniana. Estou no momento continuando essa linha, fazendo um trabalho em que considero um princípio variacional da teoria eletromagnética, sem métrica que conduz às coisas da mecânica quântica. A idéia é tomar as equações algébricas do conjunto das equações de Maxwell, sem admitir a priori o número de dimensões. Tomamos as leis Físicas num nível pré-métrico. A coisa estranha é que o desenvolvimento das equações vai exigir que a dimensão do espaço-tempo seja igual a quatro. Mas os trabalhos de que mais gosto são o de mecânica estatística clássica e este, que espero publicar até o fim do ano.

O senhor parece ter grande liberdade interior, não se ligar a esquemas ortodoxos.

Eu não me guio muito pelo raciocínio, O raciocínio é importante para provar as coisas, mas é a intuição que mostra a solução dos problemas.

Acredito que nem sempre se pode ver as coisas com clareza. Há coisas que, por sua própria natureza, não podem ser vistas com muita clareza. São coisas crepusculares, e se se quiser vê-las com clareza elas somem. E têm que ser vistas mesmo assim.

Não me imponho barreiras desnecessárias. As pessoas se autocensuram. Eu não. Mas é claro que não digo tudo que penso, não sou besta. Não me censuro, mas nem sempre falo dos resultados a que cheguei. A maior parte das pessoas tem medo, medo das coisas invisíveis. Eu tenho medo dos perigos visíveis. Talvez por isso eu não seja muito crédulo.

Isso nos remete à questão política.

Eu sempre fui um homem de posições políticas definidas. Sempre que tenho certeza, alguma certeza, tomo posições políticas definidas. É um dever que a gente tem, mesmo que se erre. Assim, acho que ajudamos mais as pessoas. Temos que dar opiniões, mesmo que não possamos provar; Isso pode estimular nos outros a procura, para que tomem direções. É o problema de Sócrates, que era um parteiro de idéias, tirava as idéias que estavam incubadas na cabeça das pessoas. Eu gostaria de fazer isso, e se faço, é sem a eficiência dele.

Recentemente, em um debate sobre a guerra nuclear o senhor fez uma exposição em resposta a previsões pessimistas feitas a partir da lógica da estratégia militar.

O que eu disse foi que eu sou também matemático, até certo ponto, e por isso mesmo sei o quanto a lógica é precária, de modo que não me entusiasmo muito pelas argumentações lógicas. Sei que é muito fácil descobrir uma brecha em qualquer raciocínio. Acho que no momento atual não estamos vivendo uma situação normal para a humanidade: vivemos um momento muito especial, um momento em que a humanidade como um todo está correndo o risco de extinção total... Tenho a impressão de que vivemos um momento em que coisas excepcionais podem acontecer. Temos que apelar para outras qualidades humanas: apenas os raciocínios lógicos não serão suficientes.

Podemos alinhar uma série de argumentos mas isso não nos leva a nenhuma decisão. O que nos leva à decisão é outra coisa, que nos impele à ação. Acho que a humanidade está tomando essas decisões. Vemos os povos se mobilizando pela paz na Inglaterra, na Alemanha...

Além do mais, uma discussão lógica nunca é uma discussão realista. A gente pode aplicar a lógica a toda e qualquer questão. O difícil é ter o senso de realidade. O problema que se coloca hoje é este: a humanidade pode ser destruída dentro de poucos dias, ou poucas horas, ou vai continuar sua história? E essa é uma questão inteiramente nova.

Mesmo a questão da ideologia política de uma pessoa... não é o tipo de questão que mais interessa no momento. Diante dessa iminência de destruição total, uma divergência política e ideológica, por maior que possa ser, não é tão grande como se pensava antes...

Neste momento, temos de ter uma grande intuição. O valor de um pensamento não é o quanto ele é lógico, mas o quanto ele representa a realidade. Temos que procurar vivenciar esta realidade de nossos dias, que é uma realidade muito rica, contraditória, complexa e que pode ser muito diferente do que nos parece à primeira vista. Vivemos um mo mento crucial e isto certamente não vai levar à inação.
Ocupação da reitoria da USP - A lucidez de um Físico da USP - Prof. Schenberg

Não se faz mais Físicos como antigamente. Os Físicos de hoje, principalmente da USP, são alienados e comprometidos com o poder econômico. Não enxergam um palmo na frente do nariz e são especialistas no arremesso de cadeira. Deveriam rever as lições do Professor Schenberg.
Texto completo: http://http://xoomer.alice.it/direitousp/mario.htm

MARIO SCHENBERG: "A Física é uma arte"

Amélia Império Hamburger

Vol. 3 N. 13 Ciência Hoje - 1984

Professor Schenberg poderia falar sobre suas aulas, sobre o que valoriza no ensino de Física e na interação com os alunos?

Para começar, eu gostaria de dizer alguma coisa sobre minhas tendências de comportamento. Antes de tudo, sou pessoa de tendências intuitivas e não de muitos raciocínios. Assim, me comporto de acordo com o que a intuição me sugere. Posso ter preparado uma aula de acordo com uma idéia e, ao chegar na sala, mudar completamente.

Também não gosto muito de separar as coisas da vida. A vida não se separa em ciência, atividade política, atividade filosófica: a vida é uma coisa só, naturalmente marcada pela personalidade da pessoa, que se manifesta em tudo o que faz.

Eu tenho tendência a ter uma personalidade intuitiva. Quando a gente se prepara muito, deixa de ser verdadeiro consigo mesmo, fica meio fingido, e dificulta o contato com as outras pessoas. Uma aula muito bem preparada, escrita, completa, é uma aula ruim, porque é uma coisa morta, não tem a vivacidade do que está sendo criado no momento em que se diz.

O principal não é transmitir aos alunos um grande cabedal de conhecimentos, mas comunicar certos pontos de vista. Sempre me guiei por isso, pela sinceridade em tudo o que se fizer, não ser pedante, não ter excessivas preocupações lógicas e com a coerência. Para muitos parece desorganizado, mas acho que essa maneira de agir penetra mais no espírito do aluno que as aulas muito bem preparadas. Muitas vezes uma aula difícil faz o aluno pensar e pode lhe sugerir algo até anos depois.

Este amor à informalidade não é tão original. O famoso matemático e físico alemão Herman Weil dizia ter aprendido mais matemática conversando com David Hilbert, o maior matemático de seu tempo, durante os passeios que faziam pelos bosques, do que nas salas de aula, em Gottingen. Aliás, a primeira pessoa que teve forte influência sobre mim, o professor Luís Freire da Escola de Engenharia do Recife, pai do senador Marcos Freire, também me ensinou muito desse modo, nas conversas informais em sua casa.

Acho que assim se estabelece um contato mais livre, e por isso mesmo mais profundo, entre professor e aluno, onde este aproveita muito mais.

Como o senhor vê a Universidade de agora em comparação com a de outros tempos?

A meu ver, a Universidade brasileira antigamente era melhor do que a de agora. Por exemplo, pela diferença no modo de encarar o ensino. Naturalmente, havia pessoas preocupadas em dar aulas levando em conta a didática, mas havia uma certa intuição na Universidade de que o importante não era tanto transmitir conhecimento mas estimular a criatividade do aluno. De certa forma, havia uma tendência ao informalismo dentro da Universidade, que depois desapareceu, principalmente com a Reforma Universitária. Pode ser que algumas pessoas ainda o conservem, mas minha impressão é que isso desapareceu.

Outra coisa diferente é que naquele tempo as pessoas não se impunham objetivos determinados de fazer teses, mestrado, doutoramentos, o que praticamente se tornou o centro das preocupações da Universidade. A pessoa não se propõe a fazer uma pesquisa cientifica, procura fazer uma tese. Essas teses só têm valor formativo se representarem uma pesquisa científica real. A própria pessoa, pelas dificuldades que deve superar na pesquisa, vai se desenvolvendo como cientista. Hoje, sendo uma coisa meio formal, isso não acontece. Antigamente não era assim: a única tese que fiz foi para o concurso de catedrático.

Hoje se obriga a pessoa a publicar muito, a publicar demais. O critério para julgamento da eficiência científica de uma pessoa é o número de publicações, o que é uma coisa inteiramente absurda. Há inúmeros trabalhos publicados que ficaram inteiramente desconhecidos. Um exemplo curioso é o de Bunsen, químico alemão que publicou mais de quinhentos trabalhos: embora tenha ajudado muito Kirchhoff a fundar a espectroscopia, é hoje conhecido apenas pelo bico de Bunsen, o bico de gás rotineiro nos laboratórios.

Por outro lado, há pessoas que ficaram famosas com uma única publicação, como por exemplo o físico indiano Bose. A história é curiosa, pois Bose escreveu um trabalhinho de meia página e mandou para o Philosophical Magazine. Como o trabalho foi recusado, Bose mandou-o a Einstein, que o publicou, sem consultá-lo, no Annalender Physik. Nesse pequeno trabalho de meia página, descreve-se pela primeira vez uma família de partículas, chamadas bósons em sua homenagem, além de outras coisas importantes.

Essa preocupação de ter um grande número de trabalhos publicados às vezes pode prejudicar as pessoas, se é que não prejudica sempre, pois a pessoa fica naquela tensão de ter que estar sempre publicando coisas novas sem tempo para se concentrar bastante em uma determinada coisa.

Seria uma questão de ir em profundidade no trabalho?

Não é somente questão de ir em profundidade num trabalho, mas de perseguir um destino também. Acho que existe alguma coisa que está além da vontade da pessoa. A pessoa não faz um trabalho profundo e original porque queira fazer um trabalho profundo e original. Faz porque faz, e às vezes nem se dá conta de que está fazendo um trabalho profundo e original. Outros é que vão se dar conta disso, às vezes até muitos anos depois da morte da pessoa. Acho que há um destino, acredito nisso. Toda a minha carreira de físico, por exemplo, se definiu por volta dos treze anos de idade, quando estudei pela primeira vez Física e geometria.

A geometria me causou um impacto muito grande, quando vi que as impressões sensoriais, as formas, aquilo que se vê com os olhos, podiam ser transformadas em uma estrutura lógica, matemática. Ao mesmo tempo, comecei a estudar Física e vi que todos os fenômenos da natureza eram regidos por leis matemáticas. Mais tarde eu seria levado a pensar que toda a Física era, no fundo, uma geometria.

O interessante que, antes dessa idade, eu tinha estudado matemática e não tinha gostado de nada, nem de aritmética, nem de álgebra. Não era bom aluno. Em geometria, fui pela primeira vez bom aluno em matemática, porque aquilo me tocou profundamente, despertou em mim alguma coisa, era um destino.

A obrigação de fazer teses e todas essas coisas pode estar afastando as pessoas de seu destino, impelindo-as em direções que não são as delas. Tenho a impressão de que a educação não deve ser nunca uma carga para a pessoa: deve ser uma coisa estimulante, dando bastante liberdade ao aluno. Einstein, por exemplo, ficou com ódio até da própria Alemanha por causa do ginásio alemão, que era tão opressivo. Fez todas as coisas sozinho, e não foi bom aluno: não assistia às aulas, e procurava respeitar muito sua própria personalidade, suas intuições. Não era preocupação dele estar muito bem informado sobre as idéias dos outros, ou documentar essas idéias. Procurava desenvolver as que tinha e, se fossem as mesmas, ótimo, não tinha importância.

O sistema atual não visa estimular a criatividade do aluno, mas sim a sua produção. Aliás, tive uma experiência interessante quando estive nos Estados Unidos em 1940, trabalhando com o professor George Gamow. Era um russo de formação européia, tinha horror à Universidade norte-americana, e me preveniu: não vá muito à universidade daqui, não é recomendável, pois a pessoa é promovida pelo ?peso? de suas publicações, e não pelo seu peso científico. Achava que isso se devia ao fato de serem, em geral, universidades particulares, e que os boards of trustees, formados por homens de negócio, cultivavam a idéia de produção sem pensar na qualidade.

O critério para promoção, para a renovação de contrato, era o número de trabalhos. Esse critério quantitativo foi introduzido no Brasil pela Reforma Universitária que, como se sabe, é conseqüência do acordo MEC-USAID. Um físico americano famoso fez uma defesa da universidade dos EUA dizendo que o país tinha necessidade de formar 50.000 engenheiros por ano, não necessariamente os melhores do mundo, para manter o desenvolvimento industrial. Quando queriam alguém de grande capacidade, contratavam na Inglaterra, onde a organização universitária permitia formar, por ano, os duzentos melhores engenheiros do mundo.

Essa era a Filosofia dominante: aplicavam no ensino os métodos industriais. Esse sistema foi transplantado para cá, fazendo tábua rasa de toda uma tradição universitária brasileira que já existia e que talvez fosse mais adaptada ao Brasil do que aquela que foi instituída.

Estou convencido de que a Universidade de hoje é uma instituição em vias de desaparecer. Ou então será uma coisa inteiramente diferente. Terá que ser reformulada, repensada, certos objetivos deverão ser redefinidos.

O senhor tem sentido esse problema em seus contatos com alunos da Universidade brasileira?

Hoje, há alunos de pós-graduação que não sabem coisas elementares. Depois de um curso de mecânica estatística que dei agora, constatei no exame oral que um aluno não sabia o que era vapor, que vapor não é um gás. Mas isso é coisa que já se deveria saber desde o ginásio! Pelo menos no meu tempo era assim. As coisas mais elementares é que devem ser bem sabidas. Talvez os alunos tenham um conhecimento puramente operacional dessas coisas, passando a estudar coisas mais sofisticadas. Acho isso muito curioso. Não consigo formar uma idéia geral do ensino hoje em dia, mas sei que não se pode dizer que a Universidade esteja funcionando bem.

Mário, gostaríamos que contasse fatos de sua infância, de como se estabeleceu sua reação com a arte, de como foi se orientando para a Física.

Nasci no Recife, mas não fiquei muito tempo por lá. Por várias vezes passei longas temporadas no Rio de Janeiro onde a família vinha freqüentemente; minha mãe me contava que aos dois anos peguei a gripe espanhola no Rio de Janeiro. Em 1930, passei o ano todo no Rio para fazer o exame vestibular. Eu queria estudar na Europa mas não deu, não tive condições financeiras para isso. Voltei para o Recife e entrei para a Escola de Engenharia de lá.

Uma das coisas mais interessantes de minha infância foi como entrei em relação com a arte. Aconteceu quando eu tinha oito anos e fui com minha família para Paris e outros lugares da Europa. Principalmente em Paris, não sei por quê, as catedrais góticas me impressionaram muito. Até consegui que meu pai me comprasse um visor binocular, espécie de slides, e depois da volta ao Brasil, durante muito tempo, ficava olhando aquelas catedrais góticas no aparelhinho. Foi um coisa que me marcou muito, esse encontro com a arte aos oito anos de idade, muito antes de encontrar a ciência. Na volta dessa viagem, quando o navio parou em Portugal, meu pai desceu de bordo e perguntou o que eu queria que ele trouxesse. Pedi um livro de história universal, e ele me trouxe o livro de Raposo Botelho, horrível, cheio de datas, nomes de reis e batalhas. Não sei como, mas li aquilo como se fosse uma delícia. Quando cheguei ao Brasil já tinha lido o livro todo. Começou aí esse meu interesse pela história, que é também antigo e nasceu em relação com a arte. E as duas se conservaram ligadas, mesmo depois.

O interesse pela ciência veio mais tarde, aos dez anos: comecei me interessando pela tecnologia, lia uns livrinhos, em francês, sobre aviões, navios, motores. O fonógrafo me impressionava multo. Na minha infância o contato com a tecnologia era muito reduzido, mesmo o automóvel era ainda bastante raro. O vôo de travessia do Atlântico pelo Sacadura Cabral me entusiasmou, mas ainda não tinha idéia do que fosse ciência: só fui estudar Física, química e história natural no último ano do ginásio.

Esse foi um ano de grandes impactos ideológicos. Além do contato com a geometria, foi também o ano em que tomei conhecimento pela primeira vez das idéias marxistas, através da revista Cultura, publicada pelo Francisco Mangabeira, filho de João Mangabeira. Foi um tempo muito fecundo da minha vida, em que muitas coisas se juntaram e interagiram.

Eu poderia ter me tornado um artista, mas isso não aconteceu, talvez pela estupidez dos cursos de desenho, onde se punha um jarro no meio da sala de aula e tínhamos que copiá-lo. Eu, que desenhava muito, coisas da minha imaginação, não gostava de ficar copiando detalhes. Fiquei então com o complexo de que não sabia desenhar. Só com trinta anos voltei a fazê-lo e vi que não era tão sem jeito quanto supunha.

E como começou sua carreira de físico?

Eu não fui para a carreira de físico, e nem havia carreira de físico no Brasil daquele tempo. Fui para a Escola de Engenharia, como todo mundo que tinha gosto por Física ou matemática, assim como quem gostava de biologia ia para a Faculdade de Medicina. Naquela época já gostava de matemática e de Física. Fiz os dois primeiros anos em Recife e depois, no terceiro, me transferi para São Paulo. No ano seguinte, criaram a Faculdade de Filosofia, com os Departamentos de Física e de Matemática, e entrei para o curso de matemática. Na época, não havia praticamente diferença entre os cursos de matemática e de Física. Formei-me engenheiro eletricista em 1935 e bacharel em matemática no ano seguinte. Logo depois fiquei trabalhando, contratado como assistente, com o professor Wataghin, trazido para fundar o Departamento de Física da Faculdade de Filosofia da USP.

No último ano da Escola de Engenharia, eu já tinha feito um trabalho de Física teórica sobre as interações dos elétrons, uma aplicação da eletrodinâmica quântica. Esse trabalho foi publicado na revista italiana Nuovo Cimento ainda em 1936. No tempo de estudante eu tinha feito um trabalhinho sobre Princípios da Mecânica, de que só publiquei a primeira parte, a Introdução, na Revista do Grêmio Politécnico. A segunda parte nunca cheguei a publicar. Já formado, fiz alguns trabalhos de Física experimental com o professor Occhialini, também na USP, sobre raios cósmicos.

Que contatos foram significativos para o desenvolvimento de seu trabalho em Física?

Aqui no Brasil esses contatos com Wataghin e Occhialini foram muito estimulantes. Pouco depois, em 1938, comissionado pelo Governo do Estado de São Paulo, fui para a Itália. Occhialini voltava para lá, em férias. Viajamos juntos, e no navio fizemos um trabalho experimental sobre a variação da intensidade dos ?showers? de raios cósmicos com a latitude. Voltei a trabalhar com ele, mais tarde, ligado a um grupo de Física experimental, na Bélgica. Em Roma, trabalhei com Enrico Fermi. Publiquei dois trabalhos sobre as funções singulares da eletrodinâmica quântica, que saíram na revista Physica.

Publiquei depois um trabalho mais completo no Journal de Pbysique et du Radium. Fiz um trabalho interessante sobre a origem dos raios cósmicos a partir dos mésons, partículas altamente ionizantes, e não elétrons e fótons, como se pensava na época. Fermi não acreditou nisso, e eu só redigi o trabalho aqui, publicando-o nos Anais da Academia Brasileira de Ciências. Mas o trabalho está citado no livro de Heisenberg sobre raios cósmicos.

Depois de Fermi sair da Itália, fui para Zurique, onde trabalhei com o professor Pauli. Encontrei Pauli várias vezes mais tarde, em Princeton em 1941, e depois da guerra, em Zurique, onde ele ensinava. Tivemos contatos freqüentes, que me influenciaram muito, não só do ponto de vista da Física. Eu que já tinha interesse pela filosofia oriental, fui estimulado por ele em muitas conversas sobre esse assunto.

De Zurique, como a guerra estava para arrebentar, fui para a Bélgica, perto de um porto de mar onde pudesse tomar um navio de volta. Passei antes por Paris onde encontrei Bruno Ponte-corvo, a quem me haviam recomendado na Itália Ele me apresentou a Frédéric Joliot e passei alguns meses no Collège de France onde dei seminários e conheci Paul Langevin.

Da Antuérpia peguei um navio do Lloyd Brasileiro. Era abril, e as tropas alemãs entravam em Praga. A guerra começou em setembro, quando os alemães invadiram Varsóvia.

Foi um período interessante. Gostei muito da Itália, onde me identifiquei com o povo e vi muita coisa sobre arte. Foi quando comecei a me interessar de novo pela arte. Em Paris conheci Di Cavalcanti que tinha um atelier junto com Di Chirico.

Foi muito interessante fazer essa viagem à Europa, antes da guerra. Paris antes da guerra era outra coisa. Foi um mundo que ainda pude conhecer e que desapareceu.

E o senhor voltou para lá depois da guerra?

Voltei em 1948, 49. Durante a guerra fui para os Estados Unidos, com bolsa da Fundação Guggenheim que pela primeira vez dava bolsas para o Brasil. Também recebeu essa bolsa Maurício Rocha e Silva. Fui para Washington onde estava Gamow, que eu já conhecia do Brasil. Gamow estava interessado em elucidar a possibilidade de colapso das supernovas. Poucos dias depois de ter chegado a Washington, comecei a estudar os cálculos de mecânica estatística e vi que não levavam em conta a existência do neutrino.

A idéia da existência do neutrino era recente, tinha sido sugerida por Pauli e por Fermi. A energia era consumida no centro das estrelas com a emissão de neutrinos, e se dava com uma rapidez tão grande quanto a do desaparecimento do dinheiro na mesa de roleta do cassino da Urca. Daí Gamow ter chamado o fenômeno de processo Urca. Esse foi um período bom em que tive muitas idéias.

Fui depois para Princeton, como membro do lnstitute for Advanced Studies, onde passei quatro meses com muita gente boa. Além de Pauli e Einstein, Feymann, que fazia tese, Wheeler, von Neuman, e Chandrasekhar. Trabalhei com Pauli em questões de relatividade geral, publiquei duas notas no Physical Review, uma chamando a atenção para o momento angular do campo gravitacional, pela primeira vez, e outra, um trabalho já começado no Brasil, sobre interações nucleares que não conservariam a paridade. Quando saiu esse resultado, Pauli não quis acreditar nele. Isso muitos anos antes da descoberta de Yang e Lee, que não conheciam meu trabalho. Sakata, num Congresso no Japão em 1965 mencionou esse trabalho.

Ainda em 1941 trabalhei com Chandrasekhar, no Observatório de Yerkes, sobre problemas da evolução do Sol, tendo estabelecido o "Limite de Chandrasekhar-Schenberg?. Esse resultado é importante em astroFísica e vale até hoje. Em 1942, se ficasse nos Estados Unidos teria que me alistar.

Fui convidado para ficar trabalhando na Universidade de Chicago. Acho que foi um erro voltar para o Brasil naquele momento. Voltei para fazer concurso e como demorou até 1944, fui ficando no Brasil. Trabalhei então em teoria eletromagnética, principalmente em questões ligadas ao elétron puntiforme. Em 1948 voltei à Europa para o Primeiro Congresso Mundial de Intelectuais pela Paz, depois de ter sido, em 1947, cassado do mandato de deputado e mantido
preso por dois meses.

Fiquei até 1953 na Universidade de Bruxelas, no Centro de Pesquisas Nucleares. Fiz vários trabalhos em mecânica estatística e teoria quântica, publicados no Nuovo Cimento, e que foram aproveitados em vários ramos da fisico-quimica Além desses trabalhos fiz uma reformulação da mecânica estatística clássica, construída a partir da mecânica de Newton. Mostrava que a indistinguibilidade entre partículas não é conseqüência da teoria quântica, mas está contida na teoria clássica. É uma questão de simetria Eu acho que esses trabalhos de Bruxelas são muito importantes.

Ao voltar, o senhor se viu comprometido com a implantação do ensino e da pesquisa em Física em São Paulo...

Nessa época, o Marcelo Damy era o diretor do departamento de Física. O Paulus Pompéia também foi diretor. Primeiro a Física funcionou na sede da Politécnica, na rua Três Rios, depois foi para uma casa velha na rua Tiradentes, e mais tarde para a avenida Brigadeiro, depois para a Maria Antônia e, finalmente, passamos para a Cidade Universitária. Nunca quis exercer cargos administrativos; só aceitei após ter voltado da segunda viagem à Europa, já em 1953. Aí fiquei como diretor do Departamento de Física até 1961.

Contribui para fazer várias modificações, e fui muito auxiliado pelo reitor, doutor Ulhoa Cintra. Sem a sua ajuda não conseguiríamos fundar o laboratório de Física do Estado Sólido, e isso foi importante. Todo o pessoal do departamento ia só para a Física nuclear, mas eu tinha uma divergência de opinião muito grande, tecnológica, com o pessoal do departamento de Física. Eles achavam que ia haver um revolução industrial, e que essa revolução ia ter por base a energia nuclear. Eu achava que vinha realmente uma revolução industrial, mas não baseada na energia nuclear, e sim na informática, na eletrônica.

Por isso, achava que se tinha que desenvolver a Física do estado sólido. Ninguém no Brasil entendia disso. Já havia alguns grupos, como os liderados por Bernard Gross e Joaquim Costa Ribeiro, mas eram grupos pequenos. Tentaram também iniciar um trabalho em São José dos Campos, mas não deu certo.

O nosso programa foi feito com recursos maiores, de origem federal. Quem me ajudou muito foi o então deputado Ulysses Guimarães. Enquanto todo mundo achava que o futuro seria a Física nuclear, eu não só incentivei a Física do estado sólido, como fiz o reitor, doutor Ulhoa Cintra, comprar o primeiro computador aqui da USP, um IBM. Mas precisei enfrentar uma oposição forte. Até os professores Oscar Sala e Carlos Gomes tentaram me dissuadir da idéia de comprar um computador. Diziam que em Boston não havia..

Os físicos eram contra os computadores; não enxergavam que eles iam revolucionar a ciência. E como ocorreu a respeito da política nuclear brasileira. No começo, você contava nos dedos quantos estavam realmente contra: um desastre econômico, e o pessoal não se dava conta disso. Os físicos brasileiros não têm muita intuição no que diz respeito ao sentido em que a tecnologia se desenvolve. Há uma falta de senso de realidade econômica, por erro de formação.

Em relação à energia nuclear, isso foi claro: não há dúvida de que o reator nuclear não pode competir de modo nenhum com a energia hidrelétrica. O cálculo do potencial hidrelétrico que as pessoas faziam era absurdo. A energia nuclear poderia competir com a energia da queima do petróleo, mas não com a hidrelétrica. Confundiram as coisas, achando que a energia nuclear sairia mais barata que a hidrelétrica.

Os físicos achavam que era na área da Física nuclear que iria ocorrer uma nova revolução industrial, e que as outras áreas eram teóricas. Não compreendiam que os raios cósmicos foram a primeira fonte de partículas de alta energia ? só depois é que vieram os aceleradores ? e neles estava a questão da estrutura da matéria Era falta de Intuição sobre os caminhos que a Física iria seguir. A Física nuclear ficou sendo um ramo secundário, e só escaparia disso se se tornasse tecnologicamente importante. Importante era a Física das partículas elementares, e não a Física nuclear propriamente dita. Os fundadores da Física experimental no Brasil viram as coisas com certas limitações, sem muita amplitude. Ficaram fascinados com a energia nuclear.

Professor Schenherg, o senhor considera os chamados fenômenos paranormais como pertencentes à mesma realidade que os fenômenos físicos. Como é essa sua concepção?

Um dos pontos que ainda não pude realizar ? e espero ainda poder fazê-lo? é a fusão da biologia com a Física. O grande problema que está diante da Física é o problema da vida. A mecânica quântica conseguiu fundir a química com a Física, e só depois dela foi possível explicar a valência química. A fronteira da Física ficou então na biologia, e o problema é como fundir essas duas ciências. Eu acho que entre a Física e a biologia está a parapsicologia. Não a parapsicologia pensada em termos de espiritismo. Aliás, o próprio nome ?parapsicologia?é ruim, porque dá a entender coisas que estão além da psicologia. Seria melhor ?parafisica?, o que vem logo depois da Física.

Veja só; Einstein não gostava da mecânica quântica porque achava que ia levar à parapsicologia. Que intuição! Mas ele não pensava em termos gerais da ciência, coisa que Heisenberg já fez: Heisenberg pensava em fundir a biologia e a Física. O que é fundamental na biologia? Qual a característica essencial da vida? Os biólogos não respondem a isso. Eu acho que são as propriedades parapsicológicas. Einstein compreendeu, desde 1927, que a mecânica quântica está beirando a parapsicologia. Mostrou que a matéria tem propriedades como que parapsicológicas. o que na verdade é um outro relacionamento com o espaço e o tempo: não é o da Física clássica, mas o da mecânica quântica. E essa fusão entre a biologia e a Física talvez nem se dê pela mecânica quântica, talvez seja pela mecânica clássica mesmo.

Para Heisenberg, a união da Física e da biologia se dá porque o fenômeno típico da vida é haver uma história. Por que não haver certa historicidade na Física? Essa era a idéia dele. Pode haver outras. É preciso uma certa sensibilidade para o desconhecido; o cientista tem que estar sempre à beira do desconhecido.

O cientista não é o homem que está no conhecido ? este é o tecnólogo. E o que está à beira do desconhecido é o problema da vida. Essa e outras questões talvez estejam ligadas à impropriamente chamada parapsicologia e tenham mais a ver com a Física mesmo. Esta pode ser uma das grandes mudanças do pensamento humano, um grande salto. A formação do cientista deve criar na pessoa uma atitude de abertura para o desconhecido. Precisa-se criar um faro para o desconhecido, no sentido de se suspeitar das coisas. Einstein era assim, a percepção dele era muito forte.

A idéia de paraFísica tem ligação com seu trabalho em Bruxelas ?

Em Bruxelas eu procurei mostrar que, dentro da mecânica de Newton, você podia fazer uma teoria das partículas indistinguíveis, necessária para uma termodinâmica correta, a fim de evitar o chamado paradoxo de Gibbs. Achavam que isso só tinha a ver com a mecânica quântica, com o princípio de Pauli, mas mostrei que não era assim. Foi o melhor trabalho que já fiz, liga-se com a equação diferencial de Liouville na mecânica estatística. Os artigos estão publicados no Nuovo Cimento.

Mas chegou um momento em que fiquei assustado, porque apareceram coisas estranhas, e eu não entendi: parecia que podiam acontecer fenômenos físicos que não tinham localização espacial. Mas eram teorias matemáticas. Ficou um enigma. Quem gostou foi o professor De Groot, da Alemanha. Ele me disse que fiz um aperfeiçoamento da teoria de Newton numa direção que não se supunha possível. Agora, recentemente, saiu um livro na Holanda, do físico canadense R. Paul que descobriu que, em muitos ramos da fisico-química, podem ser aplicados métodos da mecânica quântica, sem que sejam questões de mecânica quântica. E era realmente isso que eu tinha feito. Em muitas questões da Física clássica, podia-se aplicar métodos que pareciam ser da mecânica quântica, mas não eram, que então podiam ser aplicados à mecânica newtoniana.

Por ocasião desse meu trabalho, eu nem havia ainda ouvido falar em parapsicologia. Foi só há dez anos atrás que, lendo sobre fenômenos parapsicológicos, liguei as coisas, ou seja, os fenômenos não localizados no espaço. E esses fenômenos não precisam ser quânticos, podem ser clássicos. Assim que puder, vou retomar essas questões. Talvez sejam fenômenos que tenham a ver com a telepatia, porque é certo que a telepatia tem alguma coisa a ver com a Física. Só que não foi através da Física que tomei contato com a telepatia, mas através da arte. A arte está bastante ligada às coisas parapsicológicas. É possível que todo fenômeno artístico seja um fenômeno parapsicológico, ou envolva esse fenômeno.

E seus trabalhos mais recentes?

Desde 1965 comecei a trabalhar em problemas da gravitação. Publiquei, na Revista Brasileira de Física, em 1971, e na Acta Physica Austriaca, em 1973, dois artigos em que faço uma reinterpretação da teoria da relatividade geral como uma teoria da causalidade, em que o campo gravitacional seria um campo de causalidade. Assim, toda a geometria do espaço-tempo fica baseada na causalidade.

Na Revista Brasileira de Física, em 1977, publiquei um artigo sobre isso. E um tratamento mais primário do problema do espaço, em nível pré-geométrico, sem levar em conta a existência de uma métrica riemanniana. Estou no momento continuando essa linha, fazendo um trabalho em que considero um princípio variacional da teoria eletromagnética, sem métrica que conduz às coisas da mecânica quântica. A idéia é tomar as equações algébricas do conjunto das equações de Maxwell, sem admitir a priori o número de dimensões. Tomamos as leis Físicas num nível pré-métrico. A coisa estranha é que o desenvolvimento das equações vai exigir que a dimensão do espaço-tempo seja igual a quatro. Mas os trabalhos de que mais gosto são o de mecânica estatística clássica e este, que espero publicar até o fim do ano.

O senhor parece ter grande liberdade interior, não se ligar a esquemas ortodoxos.

Eu não me guio muito pelo raciocínio, O raciocínio é importante para provar as coisas, mas é a intuição que mostra a solução dos problemas.

Acredito que nem sempre se pode ver as coisas com clareza. Há coisas que, por sua própria natureza, não podem ser vistas com muita clareza. São coisas crepusculares, e se se quiser vê-las com clareza elas somem. E têm que ser vistas mesmo assim.

Não me imponho barreiras desnecessárias. As pessoas se autocensuram. Eu não. Mas é claro que não digo tudo que penso, não sou besta. Não me censuro, mas nem sempre falo dos resultados a que cheguei. A maior parte das pessoas tem medo, medo das coisas invisíveis. Eu tenho medo dos perigos visíveis. Talvez por isso eu não seja muito crédulo.

Isso nos remete à questão política.

Eu sempre fui um homem de posições políticas definidas. Sempre que tenho certeza, alguma certeza, tomo posições políticas definidas. É um dever que a gente tem, mesmo que se erre. Assim, acho que ajudamos mais as pessoas. Temos que dar opiniões, mesmo que não possamos provar; Isso pode estimular nos outros a procura, para que tomem direções. É o problema de Sócrates, que era um parteiro de idéias, tirava as idéias que estavam incubadas na cabeça das pessoas. Eu gostaria de fazer isso, e se faço, é sem a eficiência dele.

Recentemente, em um debate sobre a guerra nuclear o senhor fez uma exposição em resposta a previsões pessimistas feitas a partir da lógica da estratégia militar.

O que eu disse foi que eu sou também matemático, até certo ponto, e por isso mesmo sei o quanto a lógica é precária, de modo que não me entusiasmo muito pelas argumentações lógicas. Sei que é muito fácil descobrir uma brecha em qualquer raciocínio. Acho que no momento atual não estamos vivendo uma situação normal para a humanidade: vivemos um momento muito especial, um momento em que a humanidade como um todo está correndo o risco de extinção total... Tenho a impressão de que vivemos um momento em que coisas excepcionais podem acontecer. Temos que apelar para outras qualidades humanas: apenas os raciocínios lógicos não serão suficientes.

Podemos alinhar uma série de argumentos mas isso não nos leva a nenhuma decisão. O que nos leva à decisão é outra coisa, que nos impele à ação. Acho que a humanidade está tomando essas decisões. Vemos os povos se mobilizando pela paz na Inglaterra, na Alemanha...

Além do mais, uma discussão lógica nunca é uma discussão realista. A gente pode aplicar a lógica a toda e qualquer questão. O difícil é ter o senso de realidade. O problema que se coloca hoje é este: a humanidade pode ser destruída dentro de poucos dias, ou poucas horas, ou vai continuar sua história? E essa é uma questão inteiramente nova.

Mesmo a questão da ideologia política de uma pessoa... não é o tipo de questão que mais interessa no momento. Diante dessa iminência de destruição total, uma divergência política e ideológica, por maior que possa ser, não é tão grande como se pensava antes...

Neste momento, temos de ter uma grande intuição. O valor de um pensamento não é o quanto ele é lógico, mas o quanto ele representa a realidade. Temos que procurar vivenciar esta realidade de nossos dias, que é uma realidade muito rica, contraditória, complexa e que pode ser muito diferente do que nos parece à primeira vista. Vivemos um mo mento crucial e isto certamente não vai levar à inação.